terça-feira, 18 de setembro de 2007

Somos todos infractores fiscais


Não faz qualquer sentido ser obrigatório declarar ao Fisco a oferta de 600 euros que um pai faz a um filho ou que um filho faz a um pai. E nenhum sentido faz que um irmão dê 501 euros a outro irmão e, por causa disso, tenha de pagar 51 euros de imposto.
Primeiro os factos. O Governo aprovou em Novembro de 2006 uma alteração ao artigo 28º do Código de Imposto de Selo, DL 238/2006, de 20/12, que agora manda o seguinte:
"Seja ou não devido imposto, é sempre obrigatório prestar as declarações e proceder à relação dos bens e direitos, a qual, em caso de isenção, deve abranger os bens e direitos referidos no artigo 10.º do Código do IRS e outros bens sujeitos a registo, matrícula ou inscrição, bem como valores monetários, ainda que objecto de depósito em contas bancárias."
E desta maneira estabeleceu que todos os donativos em dinheiro de valor superior a 500 euros passassem a estar sujeito a Imposto de Selo.
Da regra, apenas ficaram isentadas as doações entre ascendentes e descendentes que, mesmo assim, são de declaração obrigatória através do preenchimento do modelo 1 do Imposto de Selo. A preencher quer por quem oferece quer por quem recebe o montante. Quem não declarar é infractor e como infractor terá de pagar a respectiva multa.
A parte "engraçada" deste dispositivo legal é que nada impede que ascendentes e descendentes passem sucessivamente cheques até 500 euros. E, quanto mais não seja para evitar uma burocracia, a legislação "convida" todos os contribuintes a desdobrar os cheques, ou a fazer várias transferências bancárias em vez de uma só ou até a ir às compras e não oferecer dinheiro.
Em resumo, entre pais, filhos e avós, vai passar a vigorar o célebre sistema de aquisições que funciona tão bem na administração pública. Quando o plafond de autorização de despesa não comporta a aquisição, desdobra-se a factura e remove-se o obstáculo.
Porém, embora existam expedientes para contornar os exageros, seria bom que o País funcionasse de acordo com princípios e não com artimanhas.
Afinal de contas, por que diabo é que qualquer doação entre ascendentes e descendentes, de 10 euros ou de milhares de euros deverá ser alvo de controlo fiscal?
Se se julgar que a razão para a regra se deve à necessidade de apurar suspeitas de enriquecimentos indevidos ou para controlo de fluxos financeiros está-se a lavrar num equívoco.
Para investigar suspeitas de indevidos fluxos de capitais e de enriquecimentos, o Estado tem forma de o fazer através do levantamento do sigilo bancário. A actual medida, além de vir incomodar os contribuintes, introduz um factor de dispersão no aparelho fiscal que desvia a acção dos suas verdadeiras prioridades.
Mesmo em relação às doações entre irmãos e familiares, o Estado tem a obrigação moral de estabelecer como regra que estas só sejam sujeitas a imposto a níveis superiores aos actuais. Porque, no Estado social que pretendemos construir, à frente de tudo está a prioridade à família, à entreajuda, à dádiva.
Aliás, quando José Sócrates veio defender que não compete ao Estado mas aos filhos, desde que tenham rendimentos, suportar directamente a velhice dos seus pais, quando a lei prevê que quem coabite tenha um tratamento específico em sede de IRS, está a estabelecer princípios que a nova legislação contradiz.

Eduardo Moura

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