quarta-feira, 19 de setembro de 2007

SCOLARI E AS VIRTUDES


Só mesmo a necessidade de dar nas vistas gesticulando a qualquer pretexto levou os homens da bola que vão à televisão àquelas atitudes apressadas de condenação a qualquer preço de Scolari e seu famoso murro que não existiu. (Tiro daqui Dias Ferreira, que foi cauteloso repetindo sempre o óbvio, que estavam a julgar imagens e ninguém sabia o que se tinha passado, só vendo o relatório do árbitro; ele disse e repetiu isto, valha a verdade).
O que eu vi na televisão, ad nauseum, e nas fotos, algumas delas muito boas, de ângulos realistas, foi uma vontade deliberada de dar um murro e este teria sido consumado se o jogador não tivesse recuado.
Ora, o relatório do árbitro vem fazer alguma luz sobre os acontecimentos, que até agora só víramos relatados por gente apressada e desejosa de se vingar do homem e da equipa, porque os resultados não aparecem ou por outra razão menos clara.
Segundo o árbitro, que não tem motivo algum para vir em defesa de Scolari, bem pelo contrário, o seleccionador português reagiu a uma provocação. O relatório aponta no sentido de Scolari ter atenuantes objectivas (nem estou a contar as atenuantes do carácter, registo histórico, etc) para o mau comportamento. É claro que Scolari não devia ter reagido a uma provocação de um jogador experiente que sabe o efeito que tem o empate a três minutos do fim e quis deliberadamente tentar a sua sorte. Faz parte do jogo, faz parte de todos os jogos, a virtude não está em fechar os olhos aos golpes nem na hipocrisia de substituir a realidade fluída pelas regras escritas. A virtude está em ser leal dentro do jogo em causa.
Parecer paradoxal que seja o árbitro — juiz do jogo e do que se passa dentro das quatro linhas, incluindo os murros e as tentativas — a dar a Scolari uma “pena” bem menor do que a assistência da casa. Mas não é.
Tenho lido por aí na blogosfera e nos jornais e na televisão uma teoria segundo a qual se a campanha portuguesa estivesse a correr melhor, não teria havido tentativa de murro.
Vamos colocar a questão ao contrário. Se por acaso Portugal estivesse a fazer uma boa campanha e Scolari no final de um jogo perdesse por um instante a decência e avançasse na direcção de um jogador que o provocou, teríamos o país futebolístico a condená-lo nas horas seguintes, armado num tribunal de virtudes?
Foi o exaspero por dois empates que fez um campeão do mundo e um dos treinadores mais experientes do planeta perder a cabeça e ter um ataque de fúria?
Ou é a frustração de não ver a selecção ganhar, para podermos sentir-nos triunfantes na vida, que nos faz erguer o dedinho acusador ao homem?
Como irá esta espécie de tribunal de morro reagir à decisão da UEFA, que se espera bem mais sensata e modesta que as acusações dos moralistas de bancada?
Também ouço e leio os mais insanos disparates acerca de os desportistas, com os futebolistas à cabeça, terem um “dever de exemplo”. Este “dever de exemplo” baseia-se em quê? Nos ordenados chorudos que ganham? Na dimensão mediática que as principais estrelas atingem? No facto de, como era o caso, envergarem um uniforme do Estado? O Estado não lhes paga para serem exemplos. Pelo menos, não desde Salazar. O Estado paga aos desportistas, na maioria dos casos miseravelmente, para representarem o país desportivamente. É claro que lhes exige uma atitude e alguns deveres em troca.
Nunca percebi muito bem. Um jogador de futebol é um jogador de futebol é um jogador de futebol. Joga à bola e faz vender camisolas e sonhos. Quem sonha ir a seguir cobrar porque sonhou virtudes onde não devia — eis algo insano.
Sem querer vitimizar os jogadores e as gentes do futebol, que têm os seus exércitos de defensores, devo recordar que a coberto deste nosso ímpeto de cobrança dos “deveres” deles para com “a sociedade” porque são “modelos”, assistimos na última década a uma série de castigos e punições tidas por exemplares.
Francamente, gostava que cada empresário do golpe, cada financeiro do engodo, cada político da mentira sofressem, como Sá Pinto, João Pinto, Paulinho Santos, Abel Xavier, castigos exemplares pelos seus imperdoáveis pecadilhos.
O castigo, quando nasce, não é para todos.

Em mas certamente que sim de 16 de Setembro de 2007

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