sexta-feira, 21 de setembro de 2007

A esquerda moderna e a função pública


O que é uma "violação grave e reiterada dos deveres funcionais"? É ser malcriado no atendimento numa repartição de Finanças? É pôr em causa o chefe? É atrasar tarefas? Como vai ser aplicado o "sistema de avaliação de desempenho"? Hierarquicamente, de cima para baixo? E também de baixo para cima? ...
O que é uma "violação grave e reiterada dos deveres funcionais"? É ser malcriado no atendimento numa repartição de Finanças? É pôr em causa o chefe? É atrasar tarefas? Como vai ser aplicado o "sistema de avaliação de desempenho"? Hierarquicamente, de cima para baixo? E também de baixo para cima? Com que "objectivos fixados" vai esse desempenho ser comparado? Objectivos demasiado brandos ou demasiado impossíveis? Restará pedra sobre pedra na Administração Pública? Ou mudará tudo para que tudo fique na mesma?

Há ainda uma montanha de questões a resolver na reforma da Administração Pública. Mas essa montanha não parirá um rato. O Rubicão está a ser atravessado e vai mesmo haver despedimentos entre os que servem o Estado: os processos disciplinares (após dois anos de avaliações negativas) deixam de redundar na hipocrisia das reformas compulsivas e culminam em rescisões; os contratos individuais de trabalho fazem pousio durante 12 meses no quadro dos supranumerários e depois são desvinculados. Acabou-se o emprego para a vida.

A "esquerda moderna" com que José Sócrates ganhou as eleições, há dois anos, significa, em termos económicos, que ser socialista não implica deixar de ser liberal. Sócrates é liberal. E esta reforma da Administração Pública é, nesse sentido, liberal: é "esquerda moderna", tal e qual foi eleita.

A reforma é necessária: ou há funcionários a mais ou há produção a menos - ou ambos. Mas além da razão contabilística (os números são frios, mas são os números...), há outra urgência, a de estimular o mérito, a de aniquilar a inércia, a de combater a plutocracia da cunha.

A partir de hoje, caiu um anátema sobre a reforma da Administração Pública: é a reforma dos despedimentos. Também o arrendamento foi a lei dos despejos, também a lei de bases da Segurança Social foi a sua privatização. São imagens que ficam, que têm a utilidade de criar pontos de referência no imaginário dos cidadãos mas o demérito de sumarizar os projectos. E há mais do que despedimentos nesta proposta do Governo aos sindicatos: há a mobilidade, a racionalização de estruturas e extinção de serviços, alterar carreiras, remunerações e vínculos; há avaliação e mais poder aos dirigentes.

Mas de nada servirá tanto ímpeto e "modernidade" se não houver justiça. E isso exige três acordes afinados: um sistema de avaliação de desempenho não discricionário; a blindagem de conceitos como "dever funcional"; e dirigentes que prestem.

A responsabilização do dirigente como gestor de uma dotação orçamental é um mérito em si, pois só dando poder se pode responsabilizar. Mas o director-geral não pode ser apenas o gestor do orçamento, tem de ser também o gestor das pessoas. Porque não se pode ter a autoridade de premiar, promover, contratar mas demitir-se de motivar, orientar, potenciar equipas, melhorar a produtividade. Daí que a avaliação deva começar nos próprios dirigentes. E nem sequer espantaria que, ao fim de dois anos, fosse nessa camada hierárquica que se encontrassem os primeiros indigentes intelectuais que violam "grave e reiteradamente os seus deveres funcionais".

Vamos ter contestação social, litigância sindical, pareces quanto a constitucionalidades, demagogia política. Mas esta é, de facto, a maior mudança na Administração Pública nos últimos 30 anos. Como aqui se disse, o PRACE só seria para melhor se antes fosse para pior. Começou bem: piorou.

Só mais uma coisa: e o que tem Cavaco Silva a dizer disto?

Pedro Sntos Guerreiro

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