terça-feira, 18 de setembro de 2007

A morte de um jornalista e o segredo de justiça

Morreu, aos 74 anos e de doença grave, Ryszard Kapuscinski, uma das mais marcantes referências jornalísticas dos últimos 50 anos. Repórter polaco andarilho, empurrado pelas notícias para a busca de contextos nos quatro cantos do mundo, apóstolo de Heródoto de Halicarnaso, o “pai da história”, também ele homem curioso, alguém que fazia muitas perguntas e procurava sempre as respostas, Kapuscinski será um nome identificável no actual e abúlico jornalismo português?Tenho sérias dúvidas, mas, com alguma generosidade, admito que alguns elementos da nossa tribo jornalística portuguesa saberão o suficiente de Kapuscinski, da sua carreira de repórter e, depois, de escritor, das muitas fronteiras que ele atravessou ao longo da vida e, também, da enorme desilusão que ele foi alimentando face ao jornalismo moderno, sustentado, como ele se fartou de ir dizendo, em pilhas de pequenas histórias isoladas, debitadas sem emoção, sem curiosidade e sempre sem atender aos seus contextos.Merece, aliás, a pena lembrar que, numa reportagem recente com Kapuscinsky, o El País perguntou (a propósito de Heródoto e em ligação a um livro recente – "Viagens com Heródoto") se ele recomendaria aos jornalistas de hoje e às faculdades de jornalismo a leitura de Heródoto, tendo a resposta sido seca e desiludida: "Para quê? Ninguém faria caso disso…”Eu, que tive em Kapuscinki um dos faróis da minha existência como jornalista, inclino-me perante a sua memória, com a nostalgia de quem sente a sua morte como o desaparecimento de mais um enorme pedaço do antigo jornalismo valente, curioso, sem fronteiras, fixado sempre mais nas pessoas que nos poderes, esse jornalismo grandioso que foi sendo vencido pela imposição da moderna arte de um jornalismo mecânico, conformado, burocrático e, às vezes, também hipócrita, oportunista e manhoso.Este novo jornalismo surge, aliás, em todo o seu esplendor, no episódio mais recente da longa e aborrecida novela do segredo de justiça – o da publicação, online, no espaço do Sportugal, do despacho da Procuradora Maria José Morgado, que sustenta a reabertura do inquérito que tem por base o jogo FC Porto-Estrela da Amadora, um dos desafios colocados no quadro do processo Apito Dourado.Antes de mais, devo dizer que sempre achei que o segredo de justiça não é, nos termos em que tem vindo a ser projectado, um problema do jornalismo e que, sendo um problema, embora talvez menor do que se imagina, só pode sê-lo no interior do chamado mundo da justiça. É a justiça que, em nome do eventual interesse da investigação ou da necessária protecção de quem nela está envolvido, deve fazer prevalecer e, já agora, de forma diferenciada, porque não são iguais todos os processos, o tal segredo de justiça. O jornalismo, que se orienta, ou deve orientar, pelo interesse público não pode ser, por acção voluntária ou medida imposta, uma mera extensão da rede que se tece para proteger o segredo de justiça. Se assim fosse, isto é, se o jornalismo fosse, um dia, obrigado a considerar, a respeitar ou a guardar todos os segredos necessários à paz de espírito dos poderes, então a democracia deixaria de fazer sentido e o jornalismo ficaria prisioneiro de todos os sistemas geradores de segredos de algum tipo, desaparecendo, naturalmente e em absoluto, a curiosidade que, emergindo do interesse público, obriga ao escrutínio dos actos dos poderes do Estado. Entendo, pois, que o segredo de justiça é algo que pode, ou deve, impor-se no interior da malha que compõe a arquitectura judicial e em função de determinados objectivos. Deve impor-se mais pela construção de uma ética interna que por força de uma lei e envolver todos os que se movimentam no interior de um processo. O jornalismo devia estar à margem e a funcionar, como sempre, aliás, em função das suas próprias regras éticas e deontológicas, também elas submetidas ao escrutínio das suas estruturas profissionais e de classe.A passividade jornalística, a sua burocrática colocação no edifício dos interesses, a sua falta de coragem para defender valores e assumir responsabilidades, conduziram a questão para o nível absurdo a que se chegou, com rusgas a redacções e jornalistas denunciando o jornalismo por quebras no segredo de justiça. Aqui com a gravidade acrescida de se tratar de uma denúncia que não impede o aproveitamento do que está publicado, seja por mera questão de curiosidade pessoal, seja para absorver informações que sustentem a elaboração de notícias, que acabam por ser, afinal, construídas com detalhes retirados do objecto "violador" do segredo de justiça…Mas, mesmo neste quadro de submissão jornalística à tese da alargada responsabilidade legal na preservação do segredo de justiça, discordo de qualquer violação no caso da publicação online do despacho de Maria José Morgado, partilhando, afinal, a opinião de Miguel Sousa Tavares, publicada no jornal A Bola, do passado dia 23. O despacho reabre, afinal, um inquérito que já estava arquivado e é detalhadamente conhecido, podendo apenas marcar a reinstalação do segredo de justiça a partir dele. E, para além disso, o conteúdo do despacho tem inegável e óbvio interesse público e diria, aliás, bem mais do que isso: a reabertura do inquérito devia ter sido formalmente explicada, pelo relevo da questão Apito Dourado e pelo enorme interesse público que ela suscitou. Nisso haveria, se calhar, três méritos - o primeiro, travando qualquer movimento especulativo; o segundo, revelando uma nova colocação no campo da indispensável recuperação da imagem da justiça; o terceiro, instituindo uma nova atitude, visando instalar na sociedade portuguesa uma relação de confiança e de responsabilidade entre quem administra a justiça e quem precisa de confiar na justiça.O que diria Kapuscinki se, tendo sido quem foi, tivesse sido o que foi no jornalismo português?
David BorgesJornalista

Uma vénia para o jornalismo não oficioso! (2007-01-24 23:11:47) Enviado por Jorge Freitas Concordo plenamente consigo. Deixe-me desde já faze-lhe uma vénia ao seu profissionalismo, tal a qual atribui a Kapuscinki. De facto, não houve violação de justiça e mesmo a haver o interesse público e o papel do jornalista foram cumpridos. Agora deixe-me que lhe diga que é uma vergonha para Portugal o tratamento dado por alguns órgaos de informação nacionais, principalmente os especializados. Não houve solidariedade, não houve defesa da classe, ect. A Bola, Record, O Jogo e Maisfutebol limitaram-se a fazer os seus trabalhinhos e a arranjar informações nas instituições desportivas. Estas são as suas fontes, pois são estas que vendem e que lhes dão a informação do jogador x, do y, que os convidam para jantar... A instituição x ligada à y; a h à z, e a j ligada a t. Mas que jornalismo é este? Querem acabar com o jornalismo e isto parte de dentro para fora, o que é ainda mais o preocupante. A estes muito baixos membros desta nova classe tiro o tapete... mas para cairem no chão. Força Sportugal. Aproveitem a publicidade de tiveram, continuem a ser independentes, façam jornalismo e pode ser que alguém vá atrás de vós. Nesta última semana o Sportugal foi o rei das audiências e a azia nos restantes foi por demais evidente. E o mais giro de isto tudo é que este jornal ainda está de pé. Custa ler isto, nâo custa... Faço votos que continuem, pois para mim os restantes meios já estão na gaveta, pois é isto que estes fazem com o meu interesse em conhecer realmente o que se passa à minha. Viva o jornalismo não oficioso!!!
PS. nova vénia para o David Borges

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