terça-feira, 18 de setembro de 2007

Todo ser humano é um estranho ímpar

Todo ser humano é um estranho ímpar (Carlos Drummond de Andrade)
Por Edmar Lemgruber - do Rio de Janeiro
É preocupante constatar ainda hoje, passada quase uma década de nosso ingresso no Século XXI, a existência de pessoas, pior que isso, de juízes, ou seja, a própria personificação do Estado, por isso detentores do poder-dever de prestar a tutela jurisdicional, que ainda sejam capazes de pensar como se vivessem os dias de sombra da Idade Média. Por sorte não são a regra e constituem uma minoria decimal. A sociedade moderna caminha a passos largos na tentativa, não mais de ver reconhecidos, mas pelo menos preservados, direitos que, historicamente, foram consagrados como inerentes à própria pessoa humana. A essa altura, não se pode conceber, aceitar, nem mesmo podemos ser comodamente indiferentes aos sentimentos expressados pelo Magistrado paulista Manoel Maximiano Junqueira Filho em sentença que, com todo respeito que merece o Juiz, é uma verdadeira afronta à dignidade de todo e qualquer ser humano. Sem que seja necessário questionar a orientação sexual do jogador do São Paulo, porquanto seja ela qual for, isso não importa a quem quer que seja, o fato é que, além de preconceituosa e debochada, a sentença caracteriza um verdadeiro retrocesso, além de deixar claro que o Magistrado não tem qualquer intenção de adotar a política da inclusão. Em outras (suas) palavras, o Magistrado diz que o futebol é um jogo viril e transcreve parte da letra de um hino. Não transcreve qualquer doutrina, jurisprudência ou dispositivo de lei, até porque não há nada que pudesse ser transcrito, nesse particular, que fosse ser capaz de dar suporte à tese por ele adotada. O hino até pode ilustrar, mas não serve de fundamento a decisões. O futebol, tenho por certo, não é jogo viril, afinal foi a seleção feminina (e não a masculina) a premiada com a medalha de ouro nos últimos jogos Pan-americanos. Entretanto, ainda que se pudesse admitir que o futebol é mesmo um jogo tão masculino assim (e não é), a diversidade é humana e não pode servir de fundamento a nenhum tipo de discriminação. Aliás, é esse o escopo do disposto no art. 5º da Constituição, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Enquanto se espera do Estado (nesse caso, personificado na figura do juiz) manifestações que sejam capazes de corrigir os efeitos da discriminação, da exclusão e, em última análise, de qualquer ato praticado com a intenção (ou mesmo sem ela), de violar direitos, principalmente aqueles classificados como irrenunciáveis, deparamo-nos com a sentença homofóbica lavrada com enérgica carga de discriminação (e a discriminação aqui é indistinta, sem destinatário direto, ou seja, dirigida a toda a sociedade ou mesmo apenas aos chamados grupos vulneráveis). O Juiz, como já se disse, transcreveu parte de um hino. Letra forte e carregada de virilidade, porém pouco adequada à situação. Também se socorreu de uma estrofe popular, de igual modo, equivocadamente relacionada ao caso. Melhor seria que tivesse julgado de forma diversa e, demonstrando o mínimo de cultura e sensibilidade, transcrevesse, isso sim, parte do poema “Igual-Desigual”, de Carlos Drummond de Andrade, que diz: “...Todas as criações da natureza são iguais. Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada. Todo ser humano é um estranho impar”. É possível concluir que se a sentença tivesse sido lavrada pelo poeta, ainda que sem os requisitos impostos pela lei quanto à sua elaboração, talvez o caso do atleta não tivesse assumido a proporção que assumiu perante a mídia, mas, certamente a tutela buscada teria sido entregue de forma mais digna, ou melhor, de forma digna. Falta técnica. Falta exercitar a cidadania. Falta, (por que não?) admitir que a vida pode ser vivida com poesia e, ainda assim, com virilidade. Já se foi o tempo dos Ogros, dos Gladiadores, dos Inquisidores. O ser humano, é o que se espera, e já era tempo, está em plena e constante remodelagem, assumindo contornos muito mais condizentes com a existência de uma sociedade melhor, pacífica, que consiga conviver com as diferenças, mesmo com aquelas mais aviltantes, que saltam aos olhos e agridem aos mais conservadores. Isso se chama respeito! E respeito é um direito ao qual todos têm direito, sem qualquer distinção. Richarlysson 1 x 0 Dr. Manoel (esse foi o placar). Edmar LemgruberAdvogado do escritório Marques & Muller Advogados Associados(Crítica à sentença do Magistrado que rejeitou a queixa-crime apresentada por Richarlysson, jogador do São Paulo, depois de ter se sentido discriminado pelo cartola do Palmeiras, acerca de sua suposta orientação sexual).

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