sábado, 29 de setembro de 2007
Notícias sem pessoas lá dentro
No “Público” de terça-feira última, Helena Matos comenta, sobressaltada: “Todas as semanas morrem homens e crianças ao tentarem desembarcar na costa mediterrânica de Espanha. Frequentemente morrem também mulheres grávidas que arriscam fazer a travessia, pois a gravidez facilita-lhes o acolhimento deste lado.
Já ninguém faz notícias sobre estas pessoas”. É um artigo importante. Nele subjaz uma crítica severa às omissões, deliberadas ou determinadas pela negligência ignorante, tornadas lugar-comum na Imprensa. Na Imprensa portuguesa. Em outra, verbi gratia, na castelhana e, mesmo, na catalã, esse e outros assuntos são largamente noticiados, comentados e reprovados.
Os jornais nacionais costumam atribuir profusa importância a Cuba e à Venezuela, a Fidel, moribundo ou não, e a Hugo Chavez ditador inclemente ou assim-assim, conforme o redactor; um pouco a Evo Morales e à Bolívia, e, às vezes, a Lula da Silva. Porém, nada nos dizem acerca das profundas alterações sociais registadas naqueles países. Nem o que acontece em outras nações latino-americanas, onde a liberdade de Imprensa é um mito, várias televisões foram encerradas, o poder das oligarquias absoluto, a subserviência às multinacionais permite a ascensão aos governos de uma casta congenitamente corrupta; onde a fome e a miséria converteram-se em banalidades, o etnocídio num desporto requintado e os recalcitrantes assassinados.
Os jornais, sobretudo os “de referência”, assumem uma espécie de inspiração moralizante, cujo objectivo se inclina para um só lado. Helena Matos sabe-o tão bem quanto eu. Há muito que estuda e reflecte sobre o que fundamenta, ideologicamente, a Imprensa portuguesa. E lembro-me de, a seu pedido, ter com ela conversado, na RDP, sobre o “Diário Popular”, com um horizonte vital de possibilidades que incitavam à reflexão. Este seu texto a que me refiro inflecte, naturalmente, no carácter súbito e imprevisto, essencial na prática do jornalismo.
Há um preconceito manifesto na dilucidação e no esclarecimento dos governos de Esquerda que ascenderam ao Poder através do voto. Que melhorou e que piorou, neles? Quais os constrangimentos a que a população foi sujeita? Que desequilíbrios se resolveram? Que novos equilíbrios surgiram? Quais as soluções emergentes, ante a escalada da “globalização”? Que interesses foram afectados? Como nada acontece por acaso, os preconceitos comportam a admissão de subtis servidões e desenham, com extrema exactidão, a tendência do jornal.
A Imprensa portuguesa começa a ser uma metáfora elementar e inveterada do que ocorre no mundo – e no País. “Já ninguém faz notícias sobre essas pessoas”, escreve Helena Matos. Sobre “essas” e sobre “outras”. A omissão é a forma mais abjecta da mentira. Camus, grande jornalista (convém não esquecer), e grande jornalista do compromisso, ou por isso mesmo, avisava que os processos de enganar, manipular, dissimular uma verdade comum à sociedade, através da Imprensa, exigia “um estado de vigilância obsessivo”. O princípio consiste no imperativo de se denunciar o que nas sociedades são “corpos sem alma” [Merleau-Ponty], e o que nos homens é a ausência de consciência moral.
Creio estar na altura de se rever os fundamentos dos jornais “de referência”. Que selecção informativa subjaz a este conceito; a que corresponde a linha editorial; a linha editorial tem de estar associada à linha informativa, e esta obedece a que noção de “verdade”? – sabendo-se, de antemão, que não há “verdade”, mas programas de “verdade” e que toda a “verdade” é derivativa.
Há dias, o “Correio da Manhã”, matutino que leio com aprazimento porque me informa de assuntos cuja índole é depreciada pelos “de referência”, noticiava a auspiciosa ascensão económica daquelas pessoas que passaram pelos Governos. Um escândalo. O mesmo jornal tem revelado os vencimentos afrontosos de gestores; as reformas obscenas de cavalheiros que saltitam de conselhos de administração para assessores de multinacionais, ou de assessores para governantes, até regressarem a lugares chorudos. Também tem publicado reportagens sobre a tragédia do viver português para aqueles a quem nada se oferece a não ser a miséria, o sofrimento, a solidão. Os “de referência” abordam estas questões servindo-se de pinças desinfectadas.
“Já ninguém faz notícias sobre essas pessoas”, repito a dramática frase de Helena Matos. A pulsão entre quem escreve e quem lê está gangrenada. Não se define uma verdade através de uma falsa convicção. O sentido da complexidade das coisas exige que se percorra um caminho no qual a humildade ideológica tem a ver com a grandeza do projecto. Creio bem que essas virtudes estão ausentes da Imprensa em Portugal.
Afinal, que é notícia? Vou ao O’Neill e repito-o:
Um hoje que nunca é hoje,
um amanhã que é já ontem
entre ontens que se perdem
no anteontem dos anos
no tresantontem dos lustros?
Amanhã acontecido,
notícia é sempre um depois,
é um a viver vivido?
APOSTILA – Tomando de mão o conceito oneilliano, segundo o qual há sempre um depois, aqui vai a opinião do famosíssimo Luís Filipe Scolari, em declarações proferidas à Rádio Jovem Pan, de São Paulo, em Outubro de 1998, quando Augusto Pinochet estava preso em Londres: “Pinochet fez muita coisa boa também. Ajeitou muitas coisas, lá, no Chile. O pessoal estava meio desajeitado. Ele pode ter feito uma ou outra retaliaçãozinha, aqui e ali, mas fez muito mais do que não fez”.
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4 comentários:
Obrigado pela deferencia na visita e comentário.
bom comeco
Grato fico pela visita e comentário.
Saudações amigas
So krazy
Oh..
No matter
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