terça-feira, 21 de outubro de 2008

Portugal; é um caso grave? “Portugal pode não ser viável”

José Miguel Júdice, advogado, acha que o Mundo vai entrar em recessão e admite que Portugal pode não ser viável.

Correio da Manhã – Saiu do PSD e agora é independente. Não está cada vez mais próximo do PS e de José Sócrates?

José Miguel Júdice – isso é uma grande provocação. Tive ocasião de elogiar o primeiro-ministro quando ele mereceu. Mas não estou a caminhar para o PS.

- De forma nenhuma?

- De forma nenhuma.

- E nem sequer pensa votar no PS em 2009?

- Faço lá ideia.

- Não faz ideia ainda?

- Tenho direito de votar.

- Eu sei.

- Espero que não mo tirem até lá e na altura decidirei em quem é que hei-de votar. E como sou uma pessoa que gosta de ser frontal se calhar até vou dizer antes em quem vou votar.

- A semana passada esteve aqui o doutor Proença de Carvalho e não o disse, mas deu a entender obviamente que se fosse hoje votaria PS.

- No fundo trata-se de uma ausência de alternativas.

- Se fosse hoje, como não eleições é uma pergunta um bocadinho teórica, era em todo o caso preciso perceber, em primeiro lugar, qual é a estratégia, a política que cada uma das forças em presença iria apresentar e, em segundo lugar, qual é a equipa. Porque é evidente que nos desafios que o País vai ter pela frente são muito mais importantes as equipas.

- Isso nunca se sabe, pois não?

- Alguma coisa se sabe. Eles começam a pôr à janela alguns nomes que querem exibir a seguir.

- A propósito disso e antes de o Luís falar do seu livro. É uma pessoa bem informada sobre a política e os seus bastidores. Sabe onde pára a doutora Manuela Ferreira Leite?

- Vi-a há dias no lançamento de um livro do Miguel Veiga.

- E ela falou?

- Tivemos uma linda conversa. Muito simpática. É uma pessoa encantadora, como pessoa, está preocupada com o País, mostrou-se verdadeiramente preocupada, a dizer que era preciso muita cautela para não dizer nada que possa ser um contributo para adensar a crise de confiança em que se vive. Não estou a dizer que concordo com isso. Estou apenas a relatar, como jornalista. Entretanto, sei que no dia 27 vai fazer uma conferência na Associação Comercial de Lisboa. Sei porque sou vice-presidente e fui eu que a convidei. Aliás, fui eu que a contactei, porque o convite é da Associação e portanto penso que vai ser uma altura em que vai falar.

- Vai dizer algo de concreto sobre a situação do País?

- Admito que sim. Ainda por cima é numa associação centenária, de empresários. É natural que fale. Ela não me disse que o ia fazer, mas é natural que fale dos temas da economia e das finanças que nos estão a afligir a todos.

- Nessa conversa não lhe fez nenhum apelo para o regresso. Agora os tempos difíceis exigem o regresso dos melhores.

- Não. Vamos lá ver.

- Aliás, tem escrito sobre isso.

- Mas eu não sou dos melhores. Seria um argumento para não regressar. As pessoas sabem que a minha decisão de deixar de ser membro do PSD é uma aposta inequívoca na independência partidária, não estar em nenhum partido. Aliás, eu sempre fui muito independente, fui talvez demasiado independente quando estava no PSD e não tinha nenhuma utilidade lá estar, nem para o País nem para o PSD e muito menos para mim. Continuarei independente, repito, não afasto a hipótese de apoiar o PSD ou qualquer outro partido em função da realidade concreta.

- Em Lisboa apoiou António Costa.

- E antes apoiei Maria José Nogueira Pinto quando ainda era filiado no PSD.

- Dizer que não é dos melhores é uma boutade?

- Talvez seja um excesso de modéstia.

- Um excesso de modéstia.

- Mas é melhor um excesso de modéstia do que o excesso de falta de modéstia. Sabe, a gente não se deve levar muito a sério. Devemos rir de nós próprios e nunca devemos achar que somos os melhores, porque é mentira. Ninguém é melhor e porque, às vezes, os melhores revelam-se os piores porque fracassam quando estão na situação limite onde deviam demonstrar, aí sim que eram os melhores.

- No dia 25 vai lançar um livro, tem um nome muito sugestivo. Tenho-o aqui. Infelizmente não vamos poder ficar com ele porque é exemplar único.

- Por enquanto.

- O livro chama-se Portugalando e vai ser um lançamento muito interessante. O livro vai ser lançado por Marcelo Rebelo de Sousa, poderá acontecer tudo.

- Exactamente.

- O prefácio é de António Barreto. Basicamente neste lançamento do livro, com o prefácio e a apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa está um bocadinho a história da sua vida.

- São bons amigos meus, são pessoas que eu conheço há muitos, muitos anos, com quem tive muito envolvido politicamente. Para lhe dar uma ideia, em 1979 eu e o António Barreto fizemos campanha eleitoral juntos pela AD, éramos os dois independentes, o grupo de reformadores candidatou-se, eu não era. Lembro perfeitamente que estivemos a fazer campanha no Alentejo. Foi muito curioso.

- Uma campanha difícil, no Alentejo.

- Sim, mas animado, divertido. Fizemos um ou dois comícios, uma coisa assim. Está a ver que a minha relação com qualquer deles é muito, muito antiga, são duas pessoas que eu admiro muito, que respeito muito e que fiquei muito honrado por um ter aceite fazer o prefácio e o outro a apresentação. Também vou apresentar em Coimbra, sou de Coimbra e não podia falhar, em que a apresentação é do José Manuel Fernandes.

- Director do Público.

- Exacto. A quem se deve este livro. Porque se não fosse ele eu não estaria a colaborar na imprensa e depois no Porto o Carlos Magno que também é um velho conhecido e amigo que já não vejo há muitos anos. Vamos fazer isso.

- António Barreto diz neste prefácio que a independência é o seu carácter, talvez mesmo a sua volúpia.

- Isso é verdade. Acho que ele me conhecesse razoavelmente bem. Só digo razoavelmente bem porque eu próprio não me conheço bem. Acho que tenho um prazer estético, quase que às vezes diria erótico, na independência. O que me leva ás vezes a ser um provocador. Isto é, exagero. Acho que várias vezes, muitas vezes eu fui longe demais pelo gozo das palavras, pelo gozo da provocação, pelo gozo do conflito e pelo gozo da independência. É verdade que há uma volúpia feita de veludo, sem dúvida, mas também feita de sol e de noite. Contrastes que me levam a gostar muito da independência.

- Este País, já que o livro se chama Portugalando, percebe muitas vezes o sentido dessa volúpia? Aceita?

- Vamos lá ver. Não tenho sondagens. E também se as fizesse deve só haver um ou dois por cento dos portugueses que sabem que eu existo. A sondagem não era credível. Mas o que eu quero dizer é que se eu der alguma importância às pessoas que vou encontrando nos acasos da vida e o que elas me vão dizendo eu acho que sim. Lembro sobretudo quando fui bastonário que era impressionante a quantidade de pessoas que me procuravam, que me encontravam e que me louvavam pela minha independência. Como se lembra, quando eu me candidatei a bastonário muita gente dizia isto e aquilo porque eu era do PSD e o PSD estava no Governo. Ora bem. Imediatamente as pessoas perceberam que eu não ia ser mais do que um bastonário independente. E fui. As pessoas percebem a importância de vozes independentes. Ninguém é perfeito. Com certeza que às vezes não serei tão independente quanto deveria ser, não tenho a coragem de toda a independência, de ser tão independente quanto deveria ser, como é natural, mas as pessoas acham que é preciso vozes independentes a falarem em Portugal. E infelizmente há muito pouca.

- Vamos começar a nossa entrevista depois desta introdução.

- É advogado há muitos anos e foi bastonário. Tomou várias iniciativas para pôr a Justiça na ordem. Na semana passada estávamos a falar com o doutor Proença de Carvalho e ele dizia que era impossível.

- Um grande amigo meu também.

- Mas ele dizia que o Governo pode legislar, mudar, só que não mexe nos tribunais. E enquanto não houver uma organização dos tribunais a sério, com gestores a sério, que possam pôr na ruas as pessoas que não funcionam, que não cumprem, podem fazer o que quiserem que a Justiça é um caos e vai continuar a ser um caos por muito tempo. Também tem esta visão da Justiça?

- Vamos lá ver. Eu sou, como digo

- ...vamos lá ver se é provocador ou se agora vai fazer aqui um pequeno jogo de equilíbrio.

- Às vezes fazer o jogo do equilíbrio é a maior das provocações. Ora bem. O subtítulo do meu livro chama-se ‘Olhares de um Optimista Preocupado’.

- Exacto.

- Eu sou optimista. Eu costumo dizer que as pessoas se dividem em quatro categorias: os optimistas preocupados, os optimistas despreocupados, os pessimistas preocupados e os pessimistas despreocupados. Eu sou um optimista preocupado. Ora bem. Portanto eu acho que a Justiça pode melhorar e a Justiça tem melhorado. Atenção. Aí está um a zero a favor da não provocação. É verdade que tem melhorado. Mas é evidente que ainda não se tocou, apesar dos esforços de sucessivos ministros, bons, também os houve maus. Não se tocou no centro do problema. Estive na Alemanha numa viagem profissional, viagem atribulada, tive de fazer várias escalas e a certa altura apanhei o Fígaro num aeroporto, estive a lê-lo e há um estudo sobre o atraso da Justiça na Europa. Portugal é o segundo País estudado da Europa com Justiça mais lenta.

- O segundo?

- Sim, pior só a Itália. Mas curiosamente é um dos países da Europa onde há mais processos disciplinares a magistrados judiciais. Portanto, o sistema, do ponto de vista do controlo, até funciona melhor do que na Europa, mas do ponto de vista da duração dos processos funciona pior. A magistratura portuguesa, não me canso de o dizer, e digo com toda a sinceridade, de um modo geral tem muita qualidade. A magistratura judicial portuguesa, de um modo geral, é honesta, independente, trabalhadora.

- Mesmo esta nova geração de juízes? O actual bastonário dos advogados fustiga-os permanentemente.

- Mas o que diz o bastonário não é para levar a sério.

- Faz-lhe impressão que no lugar de bastonário, que foi ocupado por si com tanto empenho...

- ...tenho pena que me tenham sucedido dois bastonários incapazes. Mas é bom os elogios que levo, o meu ego fica agradado quando tanta gente me diz ‘você foi o último bastonário’.

- Porque é que acham que foram escolhidos? Depois de si a exigência das pessoas deveria ter teoricamente aumentado e porque é que eles foram escolhidos?

- Repare. Por várias razões. Em primeiro lugar porque de facto são bons comunicadores. E, hoje em dia, ser bom comunicador, ser conhecido, como eu era, como o Pires de Lima era, é importante para ser eleito. Segundo, porque exploraram de maneiras diferentes os grandes problemas da profissão.

- A seu favor.

- Terceiro, porque de facto as pessoas desesperadas. E ao estar desesperadas entregam-se nas mãos de quem lhes promete resolver os problemas. E não vai resolver. Mas voltando ao tema mais genérico da Justiça o grande problema é a demora das decisões. E a demora é fruto de um Código, o Código de Processo Civil. Fizeram-se um conjunto de boas reformas, já este ministro as fez, o José Pedro Aguiar Branco ia fazer, se tivesse tido tempo, muito parecidas, aliás, mas com este Código de Processo Civil não há nenhum processo que possa ser rápido. Era preciso mexer no Código de Processo Civil. Mas não tem havido coragem.

- É preciso muita coragem?

- É preciso coragem porque o Código de Processo Civil é aquilo a que se agarram os juristas para estarem vivos nos tribunais. Mudar o Código implica uma aprendizagem muito grande.

- Para que as pessoas percebam. Porque é que não há essa coragem?

- Porque o Código de Processo Civil é uma espécie de bordão, uma bengala. Se fosse mudado juízes e advogados tinham que reaprender a forma de estar em tribunal. O que é difícil. Agora repare. Eu faço muitas arbitragens, como juiz, como árbitro. Arbitragens internacionais, arbitragens comerciais. Dou-lhe um exemplo. Dei agora uma sentença, enfim, os outros dois árbitros estão agora a estudá-la, de um processo muito complicado, com dezenas e dezenas de dossiers, grandes, com documentos, e o processo demorou menos de um ano. Porque não há Código de Processo Civil. Uma arbitragem com valores muito elevados, muitas dezenas de milhões de euros, pode ser feita sem Código nenhum. Com regras muito simples, quatro ou cinco regras. Um processo de cobrança de uma dívida de quinze tostões, ou um processo de condenação de uma empresa reconhecer que aquela casa não é dela precisa de um Código com mil e tal artigos. Ora bem. É impossível funcionar assim. É preciso desformalizar o Direito, é preciso torná-lo mais oral, é preciso que o juiz tenha mais poder na audiência.

- Um verdadeiro Simplex?

- É um Simplex.

- Que não chegou à Justiça?

- Não chegou. Porque é mais fácil fazer um Simplex para outras coisas, que eu não digo que não sejam importantes.

- Várias vezes tem falado na viabilidade deste País. No seu livro também aparece a pergunta ‘Portugal é viável?’. Portugal é viável? Esta pergunta hoje talvez tenha uma urgência maior. Este País é viável?

- Eu tenho dito muitas vezes que há uma ideia errada, que as civilizações não são mortais, que os países não são mortais, que os regimes políticos não são mortais. É mentira. Os regimes políticos morrem, os países morrem e as civilizações morrem. A história está cheia de cadáveres desse tipo. Ora bem. Eu tenho alertado, anda a alertar há uma data de tempo, para os seriíssimos riscos que o sistema político democrático vive, que o sistema político-partidário vive, para os gravíssimos riscos que países como Portugal têm quanto à sua sobrevivência. Foi isso que se passou com a Islândia.

- Exactamente.

- A Islândia era considerado um dos países mais ricos do mundo.

- É verdade. Está falido.

- E estava à frente no índice de desenvolvimento humano.

- Puseram a Islândia à venda na Internet. É uma brincadeira, mas que é muito sintomático. Ora bem. Portugal pode não ser viável. Depende de nós. Só depende de nós.

- Só depende de nós? Neste mundo global?

- Só depende de nós. Da nossa vontade. Eu fui em viagem agora à Alemanha com um cliente meu, que tenho há pouco tempo. Um homem que eu gosto. E ele disse-me: ‘Ó doutor Júdice! Eu aqui há vinte anos meti-me numa camioneta, não era uma roulote, era mais uma camioneta com dois beliches, éramos quatro, dormíamos metade enquanto os outros conduziam, e fomos em dois dias até Colónia para uma feira de electrodomésticos para arranjar uma representação. E viemos de lá com uma representação’. Ora bem. Portugal vive, Portugal sobrevive e é viável assim. Se não for assim não é viável. Se não for com esta dinâmica não é viável.

- Com esse espírito de iniciativa.

- Iniciativa. O que me preocupa muito é os nossos agentes políticos, todos eles, a dizerem que é preciso não assustar as criancinhas. As criancinhas somos nós. Não se lhes pode dizer a verdade, não se lhes pode meter medo. E nós estamos preocupados. Uma sondagem que eu vi esta semana demonstrava a falta de confiança no sistema bancário. Agora o Presidente da República recebeu finalmente o presidente da Associação Portuguesa de Bancos. Mas eu não vejo, como noutros países, o Presidente da República, o primeiro-ministro, os líderes da oposição a reunirem especialistas, pessoas que sabem muito mais do que eles sobre essas matérias.

- Está cada um a puxar por si.

- É. Eles estão com certeza a estudar, estão com certeza a falar com pessoas, mas não nos informam. Nós não somos crianças. Talvez seja boa ideia dizerem-nos ‘cuidado, estamos numa fase muito complicada’. É nestas fases que podemos aproveitar para mudar alguns erros, mudar alguns vícios, mudar algumas coisas que estão más na nossa sociedade e não se está a aproveitar isso.

- Falava do sistema e dizia que nenhum estava condenado a viver eternamente. É possível, em democracia, um político dizer toda a verdade e ganhar eleições?

- Não é possível em nada. Isto é, a verdade absoluta é muitas vezes uma provocação ofensiva da outra pessoa. As relações humanas baseiam-se não apenas na verdade e na sinceridade mas também muitas vezes na ilusão, na cautela, na sensatez, na prudência, na ocultação da realidade. Isto acontece nas relações sentimentais também. Se todos os homens dissessem às suas mulheres ou se todas as mulheres dissessem aos seus homens, com o machismo português é melhor esta última hipótese, ‘olha, ia a passar na rua, vi um homem tão bonito, apeteceu-me imenso ter um caso com ele’. A relação conjugal provavelmente sofreria.

- Era o mais provável.

- É normal e não fez nada de mal. A verdade, às vezes, é uma provocação, é uma forma de ofender. Ora bem. Eu não quero que os políticos digam a verdade toda. Eu quero é que eles sejam adequados, que percebam que há alturas em que a forma de ter o entusiasmo e o apoio das populações não é dizer que não problemas. É dizer que há problemas e eu ajudo-os a resolver convosco. Veja o caso do Churchill.

- Nunca vivi uma crise como esta, o Luís também não e penso que o doutor também não. Nunca vivemos uma crise como esta.

- Desta dimensão não e tenho boa memória.

- Eu também não me lembro.

- Vocês viveram a crise do FMI nos anos oitenta.

- Nós vivemos mas isso foi muito diferente.

- Era só um aparte para dizer que sou mais novo.

- Isso nota-se até na voz.

- Acha que os líderes em Portugal estão à altura desta crise?

- Eu escrevi um artigo muito violento na semana passada que se chama ‘Não mais deuses à nossa imagem e semelhança’. O que eu quero dizer com isto é que em épocas de prosperidade e estabilidade nós gostamos de eleger políticos que, de um modo geral, sejam iguais a nós. Aliás, o caso paradigmático é a campanha americana onde temos o MacCain com uma senhora que diz que ‘eu sou como vocês. Eu sou o Joe que bebe seis cervejas cada vez que está dentro da televisão’. Ora bem. Isto é divertido, faz empatia, quando tudo está a correr bem é óptimo, os políticos apresentam-se como pessoas normais, andam com as famílias, conversam de coisas banais. Aliás, o António Barreto discorda de mim nisso. Ele não defende a ideia do político herói.

- Sim.

- Acho que há épocas em que não é preciso, mas há outras em que é preciso. O grande problema é que pela primeira vez desde os anos trinta, talvez ainda mais porque a globalização é muito maior, todo o mundo vai entrar em recessão.

- Todo o mundo?

- Não é só os Estados Unidos, ou só a Europa, ou só o Japão. Todo o mundo.

- Todo o mundo? Mesmo as economias emergentes?

- Mesmo as economias emergentes vão entrar em recessão. É a minha convicção. E, portanto, as soluções são muito difíceis. E depois há outra coisa que é dramática. Em Julho todos os especialistas mundiais diziam que os dois maiores problemas na Europa e nos Estados Unidos eram a inflação e a subida do preço do petróleo. Passados dois meses...

- É tudo ao contrário.

- ...nem a inflação, nem o preço do petróleo são problemas. Pelo contrário. O problema é a deflação e a baixa dos preços das matérias primas. É muito difícil encontrar soluções para um mundo que muda com este frenesim e esta vertigem permanente. Veja o Orçamento de Estado português. Começou a ser feito numa altura em que o problema era a inflação e o preço do petróleo e o objectivo era o Pacto de Estabilidade e o défice.

- Os tais três por cento do défice.

- Passados dois meses onde é que está o Pacto de Estabilidade? As leis da concorrência. A Europa criou leis ferozes. De repente os Governos começaram a dizer: fundam-se, fundam-se sem problemas nenhuns. A gente autoriza tudo.

- Tudo isso implodiu.

- De repente tudo acabou. A ASAE. Lembram-se da ASAE? Eu não acredito quer a ASAE esteja a fazer seja o que for. Porque agora os Governo o que nos vêm dizer é mantenham-se vivos, mantenham-se a trabalhar...

- Sobrevivam.

- Se fugirem um pouco aos impostos não tem mal. De repente tudo mudou. Governar nestas circunstâncias implica pessoas geniais, pessoas com enorme coragem que tenham capacidade de dizer às populações não, não é isso, é o contrário, pessoas que tenham a capacidade de dizer às pessoas, de empatizar com elas, como o Churchill, a célebre frase do Churchill só tenho para vos dar sangue, suor e lágrimas. E foi por dizer isso que as pessoas foram com ele. O que estamos a viver é muito grave do que uma guerra mundial, é minha convicção.

- Pois é.

- Porque uma guerra mundial dura enquanto durar. E depois há uma recuperação. Aqui o problema é nós não sabermos se os modelos, com base nos quais o progresso foi-se fazendo, se podem manter.

- E há uma grande crise de confiança, não há? As pessoas já não acreditam.

- Isto aliado a um mundo virtual. Tudo parece ser virtual.

- E tudo é instantâneo. Repare. Quando havia no século XIX um atentado contra um primeiro-ministro a notícia chegava-nos pelo telégrafo quinze dias depois. Agora chega instantaneamente. Isto acontece em relação às economias, em relação a tudo. Nós não estamos preparados e não temos instrumentos. Uma coisa lamentável é que nunca se tenha tido a coragem de ir às instituições que foram criadas nos anos quarenta e dizer quem deve mandar no FMI.

- FMI, Banco Mundial.

- Com certeza os EUA. Mas deve estar a Índia, a China, o Brasil, a África do Sul. Nós estamos num mundo que foi organizado há sessenta anos e que não foi adaptado. É preciso mudar a estrutura do FMI, do Banco Mundial, é preciso acentuar o poder da Europa. É impossível que uma crise como esta esteja a ser decidida por cada Governo como lhe apetece.

- Com grande descoordenação.

- Total. O Governo da Irlanda diz: todos os depósitos que estejam na Irlanda nós garantimos. Todo o dinheiro vai para a Irlanda. E falta-nos noutros lados.

- Em Portugal não nos disseram isso?

- Não disseram isso. Disseram que não iam deixar cair os bancos, o que é diferente.

- Mas é pior ou melhor do que dizer que os depósitos estão garantidos?

- Garantir todos os depósitos é mentira. Se todos os depósitos tiverem de ser garantidos em dado momento por um dado País, com o euro, um País sozinho vai à falência. O País não pode emitir moeda. É uma declaração completamente disparatada, de desespero e que as pessoas percebem. Não é possível. Temos de avançar em relação ao federalismo europeu. É necessário criar um Governo europeu. Não tenham ilusões.

- Está mesmo federalista.

- Eu durante muitos anos fui contra o federalismo. Depois pensei, percebi e há anos que defendo o federalismo. Até como português, para que Portugal tenha um bocadinho mais de poder. O debate sobre federalismo europeu era um debate que as pessoas não queriam fazer. Agora vão ter de o fazer. O debate sobre o Governo mundial tem de ser feito.

- Nem o Tratado de Lisboa está aprovado.

- Pois não. O debate sobre o Governo mundial tem de ser feito. Há dias foi a primeira vez na história da humanidade tal como a conhecemos que houve uma decisão de um Governo mundial. Foram os bancos centrais, todos os grandes, que em conjunto tomaram uma decisão.

- Defende o federalismo num tempo em que cada vez há menos pessoas a defender isso. Mais uma vez aqui, neste caso contra a corrente.

- Nestas crises não se puxa muito a brasa à sua sardinha?

- Puxa. Os nacionalismos não vêm à tona de água?

- Precisamente por causa disso é o salve-se quem puder, que é trágico para a Europa. Oiça a minha profecia, Deus queira que eu me engane. Os EUA vão safar-se da crise mais depressa e melhor e quem vai pagar a maior parte da crise vai ser a Europa. A Europa não tem capacidade de decisão. Nos EUA um Presidente completamente desqualificado consegue chamar os players e numa semana consegue aprovar a nível de todos os EUA um conjunto de medidas. Boas ou más. Na Europa é completamente impossível.

- Não se conseguem entender.

- Já reparou que o Parlamento Europeu não reuniu para falar disto?

- Nada.

- Já reparou que a Comissão Europeia não diz uma palavra sobre isto?

- Exactamente.

- Há umas reuniões dos maiores países...

- O G4, o chamado G4

- Exactamente. É o caos total.

- Mas para que o federalismo tenha alguma possibilidade é preciso reformular totalmente a União Europeia que conhecemos. É possível um federalismo com 27 Estados?

- Nos EUA é possível com 50. Não é impossível. Tem é de haver um conjunto de dirigentes políticos que digam isso. As eleições para o Parlamento Europeu pode ser um bom momento. Que haja um conjunto de partidos ou políticos que se apresentem às eleições a dizer ‘este é o nosso programa’. E arriscarem perder. Porque uma tragédia da política actual é que, como vivemos na época dos supermercados e do pronto-a-comer, nenhum político arrisca perder. Porque se um político perder, perde a carreira. Um tipo está a fazer uma carreira durante 20, 30 anos. Apresenta-se às eleições, perde e é atirado fora. O Churcill e outros Churchills perderam e ganharam eleições durante anos.

- A propósito das eleições europeias vinha este fim-de-semana um título em que Manuel Alegre dizia ‘Não me despacham para o Parlamento Europeu’. O Parlamento Europeu é um saco, uma prateleira dourada.

- Tem toda a razão. Eu não sabia disso. Não posso dar um exemplo melhor do que esse. Repare. Se houvesse dirigentes políticos dispostos a perder eleições a Europa mudava. Como não querem perder, dizem umas coisas, todas mais ou menos iguais, uma língua de trapos completamente incompreensível, dizem as coisas óbvias, como é preciso melhorar a justiça social, temos de ter liberdade, coisas banais, embora importantes, são palavras vazias.

- Vê alguém no horizonte que possa ser o homem?

- Não vejo ninguém.

- O homem?

- O homem de Hegel? O tal herói? Não vejo ninguém. Eu olho para toda a Europa e vejo dirigentes políticos de uma fraqueza, de uma falta de qualidade. Há um senhor chamado Cameron. A sua grande virtude é andar de bicicleta com capacete, dizer umas coisas diferentes do que diziam os conservadores ingleses anteriormente e ter um bocadinho de instinto político e de marketing. Onde estão os grandes dirigentes. Não eram precisos nas épocas em que estar no Governo era completamente irrelevante, em que as economias eram dirigidas por esses senhores do Universo, em que quem mandava eram os empresários. Acabou. O Lula disse, é um grande político, que voltou o tempo da político. Eu acho que voltou o tempo da política.

- Mas com bons políticos.

- Os melhores. Um homem como Belmiro de Azevedo deveria ter o apelo da política e dizer eu candidato-me com este programa para mudar o meu País. Estou convencido de que um homem como Belmiro de Azevedo, com todas as suas características difíceis, ia ter muitos votos. O Nobre da Costa foi trucidado pelos partidos.

- Pois foi.

- Porque era um perigo para eles. Eu ando com uma luta, que também está aí no livro, que ninguém me responde. Vocês sabem que os partidos são financiados com base no salário mínimo nacional. E como este tem sido aumentado muito acima da inflação os partidos têm sido aumentados muito acima da inflação. Estão a pedir há três ou quatro anos sacrifícios aos portugueses. Mas não ouvi um único partido dizer que agora entrega de volta o que recebeu acima da inflação. O PCP culpa a lei dos partidos, está com problemas financeiros e admite despedimentos. Mas porque é que os partidos não despedem? Como as empresas? Porque é que os partidos não emagrecem? Porque é que nós, nesta crise, não diminuímos para metade o número de freguesias?

- E deputados também?

- Reduzir para metade o número de câmaras e de deputados? A política tem de dizer aos cidadãos que estão a fazer sacrifícios.

- Não diz nada.

- Nada.

- É um homem da ética, da moral, de uma forte moral, não sei se de Hegel...

- De Kant. Kantiana.

- Kantiana. Qual é a sua moral para dizer ao engenheiro Belmiro de Azevedo ‘por favor candidate-se, avance’ quando não avança e com todos apelos?

- É mentira. Graças a Deus as pessoas ainda são sensatas neste País. Não. Nunca tive apelo para coisa nenhuma. Tenho uns amigos que me dizem. Mas estou sempre disponível para a causa pública. Repare. Eu estive disponível para dar três anos da minha vida para tentar recuperar a Frente Ribeirinha.

- Frente Ribeirinha.

- Deu três anos da minha vida para ser bastonário e em muitos casos a trabalhar de graça. Antes de me chamarem para fazer mais outros que o façam. Onde estão os meus advogados de elite a darem à sociedade um décimo do que eu dou? Eu sou um pequeno empresário. O meu filho é que é o líder. Mas posso dizer que sou. Quais são os pequenos empresários que deram à causa pública tanto tempo deles como eu dou? Vamos lá ver se nos entendemos. Eu tenho dado muito. Se me perguntar: e se o País entrar numa crise dramática, se uma peleia de pessoas de muita qualidade estiverem disponíveis para darem ao País algo e se precisarem de mim para chefe de gabinete, secretário de Estado, para director-geral, para qualquer cargo sou capaz de não resistir. Quando me meteram na Ordem foi com a ideia de que era preciso pôr a Justiça a funcionar. E eu disse. Que Diabo. Eu vivo da Justiça. Tudo o que eu tenho foi da Justiça. Graças a Deus com muito trabalho e sorte ganhei bom dinheiro como advogado. Tenho de dar em troca alguma coisa. Quando me convidaram para a Frente Ribeirinha eu disse que Diabo, Lisboa... eu cheguei aqui sem nada. Lisboa fez de mim um homem, deu-me oportunidades, tenho de dar alguma coisa em troca.

- Ficou de dizer toda a verdade sobre a sua saída da Frente Ribeirinha. Num livro.

- Quando tiver tempo.

- Vai contar toda a verdade?

- Toda a verdade não sei. A maior verdade possível. O que é curioso é que eu fui-me embora há quatro meses, passaram quatro meses e anão aconteceu nada.

- O assunto morreu.

- O assunto morreu.

- Provavelmente não vai acontecer nada.

- Não vai acontecer nada. Este é um País onde não acontece nada. Quando alguém quer fazer alguma coisa...nunca fui tão injuriado, tão difamado, tão atacado, tão criticado quando disse vou dar três anos da minha vida para ajudar a recuperar a frente de Lisboa. Disseram que eu ia para lá porque o meu filho tem um restaurante e era para salvar o restaurante do meu filho. Disseram que estavam a dar-me aquilo para pagar o apoio ao António Costa. Disseram que eu apoiei António Costa para ser nomeado para ali. Esse senhor infrequentável chamado José Sá Fernandes disse que eu era um grande responsável pelos crimes urbanísticos que se tinham feito em Lisboa. Esse senhor que fez a Câmara perder milhões de euros com aquela loucura do túnel. Mas quem tem boa imprensa é o senhor Sá Fernandes, quem é atacado sou eu.

- Já teve melhores dias.

- Como é que se pode esperar que as pessoas estejam disponíveis para dar alguma coisa à causa pública?

- Isso faz lembrar aquela história da denúncia do seu pai.

- Sim, sim. Houve um crápula, professor universitário, que numa mesa, num casamento disse isto: ele é incrível, este tipo denunciou o pai à PIDE. Quando o meu pai morreu eu tinha nove meses. Este senhor não teve a menor dúvida em bolsar isto. Ele no fundo estava-se a ver ao espelho. Ele era capaz de denunciar o pai.

- É sempre assim.

- Eu com nove meses foi à PIDE denunciar o meu pai. Se eu estiver sossegadinho a ganhar dinheiro nunca ninguém me atacava. É por causa do que eu tento fazer, bem ou mal, em prol da sociedade e de Portugal que sou criticado.

- Portugal, em matéria de corrupção, é um caso grave?

- Eu acho que é razoavelmente grave. Quando era bastonário disse que o crime mais grave é a corrupção. Porque é o crime de onde nascem todos os outros crimes. A luta contra a corrupção deve ser claramente a prioridade das prioridades.

PERFIL

José Miguel Júdice nasceu em Coimbra e licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito da sua terra. Inscrito na Ordem dos Advogados desde 1977, foi assistente universitário na Universidade de Coimbra entre 1972 e 1979 e em Lisboa entre 1979 e 1981. Sócio de um dos principais escritórios de advogados do País, foi durante muitos anos militante do PSD. Bastonário da Ordem dos Advogados entre 2001 e 2004, foi nomeado por Sócrates para a reabilitação da Frente Ribeirinha de Lisboa, cargo que abandonou com polémica.

António Ribeiro Ferreira, C.M.

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