Face a uma maioria que usa e abusa do poder que tem, a oposição não perde uma ocasião para criar má impressão. E não se vê forma de sair deste filme macabro, em que somos tratados como acéfalos figurantes
Estranha-se que o país ande deprimido. Ou então atribui-se a depressão à crise económica. É cegueira: andamos deprimidos porque não temos motivos para andar entusiasmados. Nem sequer com a selecção, que perde, ou com o Benfica dos "seis milhões", que lá vai ganhando.
Basta olhar para as notícias dos últimos dias. O Governo, mesmo para quem o admira ou a ele se curva, parece em roda- -livre, transformado numa máquina de propaganda onde a ficção já se confunde com a realidade. Três exemplos:
Num ministério, o da Educação, lançam-se foguetes dias a fio a propósito dos diferentes programas de distribuição de computadores a crianças e adolescentes sem que se tenha dado a mínima formação aos professores, instalado os programas essenciais ou garantido que este investimento só beneficiava quem necessita mesmo de ser beneficiado. O bodo aos pobres (e também aos ricos) vale politicamente tanto como os frigoríficos que Valentim Loureiro distribuiu em Gondomar (apenas aos pobres), e quase não suscita interrogações sobre a relação custo-benefício, a ausência de concursos públicos ou o número de ministros envolvidos no acto benemérito de entregar o tal Magalhães. Contudo, nesse mesmo ministério permite-se que no Conservatório os estudantes tenham de assistir às aulas sentados no chão, porque não há dinheiro para mobiliário.
Daria vontade de chorar, se não acontecesse ter esse mesmo ministério colocado 35 (repito: trinta e cinco) páginas de publicidade redigida, a imitar o formato de artigos jornalísticos, num dos diários nacionais de maior circulação. Ou assegurado no seu site que os alunos do "2.º e 3.º ciclos do básico e secundário integrados no escalão A [da Acção Social Escolar - ASE] beneficiarão (...) do pagamento integral dos manuais de aquisição obrigatória", quando isso é mentira, como ontem teve de reconhecer um secretário de Estado. Vale tudo, e quando vale tudo não vale a pena chorar, pois as empedernidas e insensíveis almas que nos governam nem sequer escutariam. O poder tanto as cegou como tornou surdas, e lá do alto dos seus gabinetes ou por trás dos vidros fumados dos BMW, só se preocupam em não terem de se cruzar com o povo-povo, o que não foi contratado para aparecer nas cerimónias televisionadas.
Podiam, contudo, não nos comprometer o futuro. Porém, numa altura em que nem os maiores bancos conseguem crédito junto dos outros bancos, eis que insistem em lançar obras de duvidosíssima rentabilidade, como ainda anteontem reafirmou o ministro das Obras Públicas. É tão absurdo, tão contra os sinais que chegam da economia, que só se pode perguntar: a quem, bem lá no fundo, aproveita a teimosia?
Mas se o Governo não dá sinais de melhoras nesta sua forma autista (e autoritária) de gerir o país, se a obediente Assembleia se prepara agora para coroar uma legislatura de lei anti-liberdade de imprensa com a pior e mais danosa de todas elas, o desespero aumenta quando se olha em redor e se sente o vazio.
A principal responsabilidade é do principal partido da oposição. Uma coisa é queixar-se de que lhe pedem para ser o que não é - oposição, o que significa que se espera que critique o Governo -, outra bem diferente é repetir erros, quando tem oportunidade de dizer o que pensa. Ora no mesmo dia em que, correctamente, o PSD decidiu dar liberdade de voto aos seus deputados na questão do casamento homossexual, em salutar contraste com a imposição da disciplina de voto no PS, e o triste espectáculo dado por um grupo parlamentar obediente e venerante, Manuela Ferreira Leite conseguiu estragar tudo ao pedir uma audiência de urgência ao Presidente da República. Por causa da crise? Para denunciar o clima de intimidação criado pela maioria? Não. Para ir perguntar a Cavaco o que pensa sobre o reconhecimento do Kosovo. Colocou-se numa posição subalterna e só pode ter atrapalhado Belém, cuja margem de manobra e influência diminuiu. Tudo isto por causa de um tema que, sendo importante, está muito longe das preocupações dos portugueses. E onde, a bem dizer, o que Portugal faça ou não faça, nos dias que correm, pouco adiantará.
Mais: enquanto, em Lisboa, o líder parlamentar do PSD protesta contra as limitações à liberdade a que nos estamos a habituar (é triste dizê-lo, mas é verdade), o líder do PSD-Madeira faz gala em violar de forma ainda mais ostensiva regras mínimas de decência, como sucedeu na votação que impediu o PS de ter uma, apenas uma, das vice-presidências da Assembleia Regional.
Podíamos multiplicar os exemplos e falar também do PCP e da "reforma" de Agostinho Lopes (dizia-se que um comunista nunca se reforma...), do CDS-PP e das suas inconsequências, do inefável Bloco e das suas artes para vender ilusões com a beatitude dos diáconos, mas ficamo-nos por aqui que a fronteira é já ali e, bem vistas as coisas, lá por fora também sobram os exemplos de populismo, indecisão e inútil intriga e discórdia. Cá finge-se que tudo está bem (mas deixa-se o rabo do gato de fora, quando se fazem operações como a concretizada terça-feira pela Caixa Geral de Depósitos), lá fora reina o desnorte. E se, apesar de tudo, nos Estados Unidos o Congresso pode acabar por aprovar um plano impopular, na Europa arriscamo-nos a nem chegar a ter plano.
Mas a verdade, verdadinha, é que apetecia voltar a escrever, num muro junto ao aeroporto de Lisboa, o que lá esteve escrito em 1975: "O último a sair que apague a luz."
José Manuel Fernandes - Lisboa
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