“Falou-se, na imprensa mundial, em ‘diplomacia sinfônica’, ‘diplomacia musical’ ou ‘no dia surreal da Filarmônica de Nova York’”
“A noticia é simples; no inicio do ano de 2008, em 26 de Fevereiro, a Orquestra Filarmônica de Nova York tocou em Pyong-yang, Coréia do Norte”
A Filarmônica de Nova York tocou na Coréia do Norte. Isso mesmo, mas não estamos interessados no conteúdo do que foi tocado nem se tal Orquestra conseguiu tocar algo. Também não iremos criar tema com o desempenho do maestro e da sua equipe. Nada disso será o centro da crônica de hoje. A noticia; é simples, eu repito: “no dia 26 de Fevereiro, a Orquestra Filarmônica de Nova York tocou em Pyong-yang, Coréia do Norte”.
Podia ser muito bem uma noticia local, sem grande percussões no Mundo, tendo em vista a escolha de um repertório relativamente medíocre, mediano, sem grandes provocações musicais. Mas não foi um evento simples, nem tão pouco uma noticia local. E por que? Falou-se, na imprensa mundial, em “diplomacia sinfônica”, “diplomacia musical” ou “no dia surreal da Filarmônica de Nova York”. Mas o que houve, realmente, de tão extraordinário?
Os mais otimistas devem estar pensando que vou falar na provável função política da arte contemporânea, cuja responsabilidade estaria relacionada à aproximação dos povos, das culturas, etc. Aqui: aproximar povos ideologicamente separados há décadas. Poder-se-ia querer pensar, ainda, romanticamente, na função unificadora da arte enquanto um vetor para a paz mundial; afinal, até mesmo para um brasileiro do outro lado do mundo a curta noticia veiculada nos telejornais pôde emocionar e dar muito a pensar: a arte exercendo um papel extrínseco a ela, um papel que ela teve de rechaçar para que sua autonomia pudesse ser celebrada. E hoje, a arte não precisa e no tem de ser autônoma para ser arte. Mas o propósito da reflexão do dia não é a arte, pelo menos não diretamente. É a política. A questão é: será que não deveríamos simplesmente desconfiar do acontecido e perguntar por sua razão mais elementar?! Por que um povo pobre e miserável? mas com um míssil nuclear prontinho!? que desafiou a maior potencia bélica do Mundo resolveu convidar uma das orquestras dessa mesma potencia desafiada para fazer uma apresentação dentro da sua terra? E mais, pó que os Estados Unidos insistiram em aceitar prontamente o convite, tendo há pouco tempo ameaçado invadir a Coréia do Norte, caso o país insistisse em ter fábricas de energia nuclear?
Foi um evento muito bonito, esse espetáculo musical, muito emocionante, posso acreditar: para muitos dos presentes ou não naquele imenso teatro de Pyong-yang. Mas o que, de fto, emociona ali? A provável aproximação supostamente pacifica de dois inimigos declarados?! Seria um bom motivo,mas a política não é sentimentalista. Enfim, é tudo, no mínimo, muito estranho quanto ao real motivo desse evento.
Talvez o evento mesmo seja uma resposta para a pergunta. Eu quero dizer: talvez esses dois países só possam estar unidos quando estão ao serviço da arte. É, pode ser isso! São países, cujas propostas ideológicas e ambições políticas estão profundamente separadas, mas, por um breve e curto momento, afirmam ao mundo que podem se aproximar e minimizar as suas tensões políticas e ideológicas para experimentar um pouco de arte, qualquer tipo de arte. Nem um nem outro está interessado em arte. Eles estão interessados na imagem que esse evento pode trazer no sentido de tentar mostrar que a arrogância de amos os lados pode ser minimizada. Com isso, tentam apenas passar a falsa impressão ao mundo e à opinião pública de que podem ser povos pacíficos sem ter de tornar flexíveis as suas ideologias. No fundo, é tudo um grande golpe. E a prova incontestável disso é que, a qualquer perturbação geopolítica, estarão as duas potencias preparadas para agressões mútuas, esquecendo rapidamente do exercício de tolerância gerado pelo concerto histórico de 26 de Fevereiro de 2008. Mas, antes disso, obviamente, ainda pode dar tempo de uma surreal Orquestra do Partido Nacional da Coréia do Norte ir aos Estados Unidos da América retribuir a falsa gentileza com hipocrisia!
‘Miguel Gally’
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