terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

VIEIRA, 400 ANOS

Um portal para um tempo de múltiplos, incessantes nascimentos e reconhecimentos do que podemos considerar nossa cultura luso-brasileira e também historia, arte, alma e espírito. Espaço de criação que transcende protocolos de temporalidade.
Tempo vário de múltiplas temperaturas existenciais. Templo para a contemplação eterna e beleza. Degrau para a fé. Um colóquio com a eternidade. Vinha, praia, galáxia, rio e oceano. Estas definições da obra do Padre Vieira, nascido há 400 anos em Lisboa, Portugal, estão longe de conquistar a totalidade dos significados que se despejam todos, asas, ritos, glórias, saberes, entre nós. Fernando Pessoa considerou-o o Imperador da Língua Portuguesa. Hernani Cidade, autor de biografia da qual obtivemos indicativos para este artigo, consagrou-o como o escritor definitivo.
Ao longo deste ano, Brasil e Portugal festejam vida e obra desse que é considerado por muitos o mais expressivo autor em prosa portuguesa. A este respeito, Gilberto Freyre tem opinião divergente. Considera Fernão Mendes Pinto, de “Peregrinação”, o maior do quarteto composto também pelo Padre António Vieira, mais Duarte Lopes e Garcia de Orta. Os países, com a programação deste ano, criam nova oportunidade para vivências múltiplas nos espaços de transmissão de conhecimento.
Conhecer, vivenciar, compreender a obra de Padre Vieira: conquista de novo ângulo de observação do que somos enquanto projeto de civilização.
TEMPO, UNIVERSO, TEMPORALIDADES
Ler Vieira é aprender mais sobre nós mesmos, nossas origens, fundamentos sociais que nos motivam ao agir, inclinações espirituais, matizes psicológicos. Vórtices de aspirações ascensionais quanto à virtude e à beleza e sinalizações humanistas preenchem os espaços de tempo que nos separam do mundo em que ele viveu.
A propósito da compreensão da obra, atentamos para a noção de tempo esquematizada pelo filosofo espanhol Leonardo Pólo, e que nos situa frente ao que o autor dos Sermões escreveu. Primeiro, devemos atentar para o tempo que ele classifica de “epocal”, referenciado por todos os aspectos físicos e também anímicos da época em que o Pai Grande; como os índios chamavam Vieira, viveu. Depois, atenção para a noção de tempo de um universo imóvel, fixo, sempre atual e a idéia de que há forças divergentes à imobilidade caracterizadas pela sucessão, variação e mudanças constantes de todas as coisas, conceitos presentes desde os gregos. E também a idéia do tempo da modernidade em que múltiplas dimensões temporais convivem. Extrairemos desta operação de interpretação temporal o vigor de uma obra que merece todas as nossas atenções.
ESTILISTA, APOLOGISTA, PROFETA, VISIONÁRIO
Ele foi o estilista mestre da apologética, da retórica e da oratória que deixou vastíssima obra literária: 700 cartas e 200 sermoes que encerram um fluxo de renovação da língua, além de textos sobre política, filosofia, teologia e até mesmo um conjunto de profecias. Também foi o visionário que acreditou ser Portugal a nação escolhida para ser o V Império depois dos caldeus, persas, gregos e romanos. Uma carta em que profetizou o renascimento de D. João IV deflagrou as acusações de heresia, o que faria o Santo Oficio persegui-lo por vários anos. Os textos à nossa disposição hoje foram produzidos para o ouvir das platéias e não para a leitura. Neles, emerge a cultura clássica do jesuíta, pregador da Capela Real de D. João IV de quem foi conselheiro por 11 anos, afeito à patrística, à escolástica e principalmente ao tomismo. Chegaram-nos textos em que a arte da retórica está a serviço da dialética, da clareza e da transparência das imagens. A referência à Bíblia como vetor do conhecimento traz, no entanto, a abrangência conceitual do aristotelismo. Suas pregações eram fenômenos de massa. Em Roma, os soldados impediam que as pessoas tomassem o lugar das autoridades para vê-lo e ouvi-lo.
DEFENSOR DO ABSOLUTISMO
Vieira projeta-se no tempo na condição de gênio inovador, aquele que encara os avanços propiciados pelo século XVII em quase tudo o que tem de moderno. As revoluções propostas por Galileu e Descartes. O surgimento do direito da natureza teorizado por Hugo Grócio. A geometrização do divino intentada por Spinoza.
A alma da modernidade está em Vieira. Modernidade, entretanto, esta do século XVII, em que o absolutismo afirmava-se no contexto da Contra-reforma.
Em que a autoridade do rei decorre de um direito divino, conjuntura em que tal autoridade impõe-se por força de um pacto estrito no âmbito da sociedade enquanto necessidade para a definição dos padrões de vida. Vieira foi enfático defensor desse direito.
DIREITOS HUMANOS, ÍNDIOS E NEGROS
Definitivamente, ele foi precursor dos direitos humanos. Os pesquisadores de hoje vinculam os milhares de quilômetros que percorreu cruzando oceanos e quase toda a Amazônia aos ciclos de globalização no âmbito do Ocidente Cristão.
Indignou-se frente à escravidão atraindo a ira dos mandões. Pregou contra a submissão dos índios, defendeu os judeus, afrontou a Inquisição o que lhe valeu dias e dias de prisão nos porões do Santo Ofício. Cinco anos de cárcere em Coimbra.
Vieira foi um dos mais arrojados diplomatas do século XVII. Peregrinou pela Europa em missões cruciais para o desenvolvimento do Império português. Negociou o resgate a ser pago por Pernambuco aos holandeses depois da expulsão que estes sofreram a Nordeste.
MÍSTICA
A sua presença estimulou mística que incluía o famoso “estalo” na cabeça, quando então ele compreendeu “todas as coisas” aos 16 anos, bem como a aparição de um anjo que o conduziu de volta da escola para casa quando certa vez se perdeu na Bahia. Há registros de que por volta de 1720, quando de escavações na área em que ele foi sepultado, revelaram-se pontos brilhantes como diamantes incrustrados no seu cráneo.
O certo é que a obra vive. Legado e monumento, arquipélago de um sber infinito.

‘Walter Galvão’

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