Eu sou transexual
Histórias de pessoas que buscam dignidade e respeito
Márcia Leite
A transexualidade ainda enfrenta forte preconceiro e desinformação. A experiência de nascer com cromossomos, hormônios e genitais de um sexo e adotar o comportamento e a convicção de pertencer ao gênero oposto resulta em inúmeros conflitos e sofrimentos para os transexuais e suas famílias.
Para a ciência, o comportamento transexual nada tem a ver com preferências sexuais, como no caso dos homossexuais. A desarmonia entre o corpo e o cérebro é considerada um problema genuinamente médico, que ocorre durante a gestação, quando há uma divergência entre a programação sexual do cérebro e o formato dos genitais.
Entretanto, segundo Tatiana Lionço, doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), não existe uma determinação para a transexualidade do ponto de vista dos direitos humanos. "É preciso analisar cada caso, a história pessoal de cada um. É necessário enxergar a transexulidade do ponto de vista social", explica.
A psicóloga sustenta outras linhas de pesquisa que diferem da definição científica. "Existe um padrão sexual construído com base na heterosexualidade, e isso traz a idéia de anormalidade e inferioridade para tudo o que não corresponde a esse modelo. Nasce aí o preconceito e a exclusão social, além da violação aos direitos humanos básicos como, por exemplo, o acesso ao mercado de trabalho, à saúde, à educação", afirma.
Diferente
Criada em uma família tradicional, no interior de Sergipe, a transexual Walkíria Marjan Souza Santos, 46 anos, enfrentou todos os tipos de preconceitos que envolvem a transexualidade. Aos cinco anos de idade, sua mãe percebeu que ela era uma criança diferente. "Me lembro bem o dia em que minha mãe sentou comigo e me falou, claramente, sobre tudo o que eu iria enfrentar e me preparou", lembra.
Naquela época, apesar do assunto ser considerado um tabu, a família de Walkíria tentava compreender o comportamento da filha. "Eu era um homem, com cabeça de mulher", define. "Me vestia de homem, usava roupas masculinas, mas aquele não era o meu mundo. Foram muitos anos até eu mesma conseguir compreender", afirma.
Durante toda a adolescência, Walkíria tentou se comportar de acordo com o gênero com o qual havia nascido. "Tentava fazer as coisas que um homem faz, mas vivia em meio a muitos conflitos", conta. Aos 22 anos, ela veio morar em Brasília. Mas, somente aos 26 anos, ele compreendeu a transexualidade. "Eu não sabia das diferenças que existiam. Foi uma vida inteira de agressão comigo mesma, me forcei a ser algo que eu não era", afirma.
A partir daí, Walkíria descobriu a possibilidade de realizar a cirurgia de transgenitalização, mais conhecida como mudança de sexo. Desde então, a transexual começou a freqüentar sessões de acompanhamento psicológico no Programa para Transexuais, do Hospital Universitário de Brasília (HUB). "Foram seis anos de tratamento psicológico para ter certeza da minha decisão e realmente estar preparada", conta.
Há quase dois anos, Walkíria fez a cirurgia e diz que os resultados superaram suas expectativas. "Tudo mudou. Hoje sou uma mulher feliz e realizada. A sensação é de liberdade", afirma. Ela luta agora na Justiça para mudar o nome e o sexo nos documentos pessoais.
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Mudança é possível
Desde 2002, o hospital da UnB oferece acompanhamento psicológico para as pessoas que não se identificam com seu sexo de nascimento, mas a instituição ainda não realiza a cirurgia. Cerca de 60 pacientes já foram atendidos entre transexuais femininos e masculinos.
O procedimento cirúrgico é feito no Hospital das Clínicas em Goiânia (HCGO). Antes de passar pela troca de sexo, os candidatos precisam seguir alguns critérios: ter mais de 18 anos, no mínimo dois anos de participação no programa, passar por avaliação psicológica, acompanhamento psicoterápico e de uma equipe multisciplinar, com endocrinologista, urologista, psicólogos, cirurgião plástico, ginecologista e psiquiatra.
Operação dispendiosa
Em 2002, o Conselho Federal de Medicina reconheceu a cirurgia para mudança de sexo e autorizou o procedimento em toda a rede pública e privada. Atualmente, a cirurgia em um hospital particular custa em torno de R$ 12 mil.
No ano passado, o Ministério da Saúde havia anunciado a inclusão dos procedimentos cirúrgicos para mudança de sexo na tabela financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), anunciada em meados do ano passado, suspendeu a medida. A União Federal alegou que as operações gratuitas trariam prejuízo aos cofres públicos.
Ainda não há nenhum levantamento do número de transexuais no Brasil. Mundialmente, as estimativas apontam que, entre os homens, o transtorno de gênero ocorre entre 1 para 37 mil e 1 para 100 mil. Entre as mulheres a taxa diminui drasticamente, de 1 para 103 mil e 1 a cada 400 mil.
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Josemar Gonçalves
Há cerca de um mês, Maria Luiza ganhou o direito na Justiça de assinar o nome feminino
"Gênero nada tem a ver com caráter"
A história de Maria Luiza da Silva, 47 anos, já ocupou as páginas de inúmeros jornais e revistas brasileiras e até internacionais. Desde a infância, o comportamento feminino era bastante presente. "Não foi uma opção ou uma escolha que eu fiz. Eu me sentia e agia como uma menina, era instintivo", conta a transexual.
O preconceito foi constante durante toda a sua infância e adolescência. "Meus pais me obrigavam a brincar junto com os meninos, a usar roupas masculinas. Durante a adolescência fui submetida a um tratamento com hormônios masculinos para que nascessem pêlos no corpo, para engrossar a voz e para desenvolver o órgão genital. Foi muito difícil passar por tudo aquilo. Eu não queria", relembra.
Entre tantos obstáculos que enfrentava, quando estava prestes a completar 19 anos, Maria Luiza entrou para o Serviço Militar. "Era uma obrigação. Para a sociedade eu era um homem. Entrei para a Aeronáutica e um ano depois descobri que podia ter uma profissão", conta. "Sempre gostei de aviões e lá me especializei em manutenção de aeronaves".
Foram 22 anos prestando bons serviços na Força Aérea Brasileira. Na ficha de avaliação, o desempenho era sempre de excelência. Mas, enquanto trabalhava e os anos passavam, as dúvidas e os conflitos permaneciam na cabeça de Maria Luiza. "Busquei tratamento psicológico e psiquiátrico dentro das Forças Armadas. Lá, médicos militares atestaram a minha transexualidade e passar por uma cirurgia era o mais indicado", lembra.
Depois de concluir que realmente era uma transexual, Maria Luiza entrou com um processo administrativo interno para mudar o sexo e passar para o quadro feminino militar. "Não aceitaram a mudança e decidiram me reformar. No laudo diz que estou apta a realizar qualquer atividade civil, que não tenho nenhum transtorno mental, mas me afastaram da função militar. Hoje estou aposentada", lamenta.
Mesmo assim, Maria Luiza não desistiu. Em 2005, ela foi a primeira transexual do DF a realizar a cirurgia para mudança de sexo. "Foi a maior alegria da minha vida. Levo minha vitória para que as pessoas reflitam e revejam o preconceito. Gênero não tem nada a ver com caráter ou competência", enfatiza.
Há cerca de um mês, Maria Luiza ganhou o direito na Justiça de assinar o nome feminino. Na nova certidão, o passado confuso já não existe. Nas próximas semanas, ela concluirá o processo administrativo na Aeronáutica para ter a mudança reconhecida. Na carteira militar ela passa a ser a cabo Maria Luiza da Silva. "Foram muitos anos de espera".
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Decisão e preparativos
Simonete Leite, 49 anos, é uma das pacientes do grupo do Hospital Universitário de Brasília (HUB). Há um ano, ela realiza semanalmente o tratamento psicológico e aguarda ansiosa a chance de realizar a cirurgia para mudança de sexo. "É um sonho", afirma. No entanto, ela considera o processo burocrático e lento. "Completo 50 anos de idade em outubro. Como uma pessoa pode chegar a esse estágio sem saber o que quer?" indaga. "No caso de uma pessoa que tem entre 20 ou 30 anos, a dúvida pode ser natural. É preciso ter certeza. Mas no meu caso, quero poder aproveitar e viver. Porque, até hoje, ainda não vivi de verdade", afirma.
Funcionária pública há 30 anos, Simonete sabe que a cirurgia não resolverá todos os problemas, mas acredita que é um dos passos mais importantes para o transexual. "A cirurgia é essencial. Sei que ainda há muito a enfrentar e sempre haverá o preconceito", lamenta.
Natural de Juazeiro do Norte, no Ceará, ela afirma que já nasceu mulher. "Aos sete anos de idade eu tinha consciência do que queria ser. Apesar de ter um corpo predominantemente masculino, sempre me comportei como menina. Aos 13, me vestia com roupas femininas e adotei o nome com o qual todos me conhecem hoje", conta. A família não apoiou a decisão, mas Simonete garante que compreende. "Não os julgo. Sei que é muito complicado", diz.
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