segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Legado da jornalista que denunciou Putin


Tudo aconteceu no prédio de Moscovo onde vivia há anos. Regressava do jornal ‘Novaya Gazeta’ após um dia de trabalho como os outros. Mas, na sombra, era esperada pelo homem pago para acabar com a sua vida. Três tiros no peito e um na cabeça silenciaram uma das vozes mais lúcidas e incómodas da Rússia do presidente Vladimir Putin. Estávamos a 7 de Outubro de 2006, dia de aniversário do presidente.

O Kremlin imputa o crime à Tchetchénia, região separatista cuja tragédia, vivida às mãos das tropas russas, a jornalista Anna Politkovskaya denunciou em artigos e livros que a tornaram conhecida fora da Rússia.

No seu próprio país, lidos por uns quantos, os textos não tinham eco, disse-o ela mesma numa entrevista concedida semanas antes de ser executada. “Não ponho a minha vida em risco”, afirmou então. A ironia trágica dessa convicção, à luz do que se seguiu, perpassa no diário que nos deixou e que no próximo dia 11 é publicado em Portugal.

‘Um Diário Russo’ (ed. Bertrand) é um livro com pouco de íntimo e pessoal. Mais do que falar de si, Politkovskaya conta o que viu e o que as suas experiências a levam a concluir, fazendo deste seu derradeiro livro o legado de uma jornalista que dedicou os últimos anos de vida a traçar o quadro da Rússia por detrás das máscaras. Putin surge aí como figura sinistra, herdeiro ‘legítimo’ do passado sanguinário da União Soviética.

Isso não impede a frequente ironia na descrição. Putin é referido, por exemplo, como um “excelente imitador” que “gosta de usar roupas de outros” e um homem “tão pomposo e imperial como um rei de um conto de fadas”. Mas o olhar é crítico e pessimista: “Assistimos a uma crise na democracia parlamentar russa na era Putin? Não, assistimos à sua morte.”

O livro cobre o período de Dezembro de 2003 a Outubro de 2005, dando conta da reeleição de Putin e da lenta queda da Rússia numa ditadura (mal) disfarçada de democracia. O cerco e o massacre de Beslan (2004) surgem também no diário, assim como um sombrio encontro com Ramzan Kadyrov, o “lunático” senhor da guerra que Putin colocou à cabeça da Tchetchénia.

‘Um Diário Russo’ é uma obra incómoda mas fundamental. Jon Snow afirma, no prefácio, que ao terminar a leitura sentiu que o livro “deveria ser levado pelos ares e lançado, em grande número, sobre toda a Rússia”. Talvez devesse igualmente ser largado nos corredores do poder dos países ocidentais, cúmplices de Putin, para que as consciências dos que governam os “oásis” da democracia mundial durmam menos sossegadamente.

RÚSSIA DEVE ESCLARECER

Mais de 60 personalidades de todo o Mundo – entre as quais o bispo Desmond Tutu, o dramaturgo Harold Pinter e a actriz Susan Sarandon – assinaram uma carta, publicada ontem no jornal britânico ‘The Times’, onde pedem à Rússia que esclareça a morte da jornalista.

PERFIL

Anna Stepanovna Politkovskaya nasceu em Nova Iorque (1958) filha de pais ucranianos. Jornalista e activista dos direitos humanos, era uma dura crítica do presidente Putin e da guerra na Tchetchénia. Premiada por diversas vezes, tanto pelo trabalho jornalístico como humanitário, foi distinguida este ano, a título póstumo, com o World Press Freedom Prize, da UNESCO.
F. J. Gonçalves

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