terça-feira, 27 de maio de 2008

Última Vaca Algarvia

Uma anónima vaca, que devora o pouco verde deixado pelo casario de Vale da Telha, Aljezur, poderá bem ser a única que ficou na região.

A raça chegou a ocupar todos os pastos algarvios, mas hoje está extinta. Recenseados pelos serviços oficiais, restam 14 exemplares, todos no Alentejo.
O Observatório do Algarve (OA) foi descobrir há dias o que poderá bem ser o último exemplar do Algarve, pastando tranquilamente em liberdade, junto das “irmãs” de outras raças. Com um corno em baixo, o que deverá dever-se a algum acidente ou a uma luta, ao longo da sua existência, de mais de 20 anos.
A reportagem do OA não conseguiu falar com o pastor, "mestre Alberto", mas sabe que ele garante ter adquirido o animal há cerca de 20 anos, quando ainda havia nos campos algarvios um espólio genético considerável. E um técnico conhecedor garantiu que o animal pode mesmo pertencer à raça, considerada extinta no Algarve.
Ao que o OA apurou, o exemplar não fez parte dos dois estudos feitos até agora pela Direcção Regional de Agricultura do Algarve (DRAALG) em torno da recuperação da raça, o primeiro dos quais, em 2001/2002, implicou a recolha de sangue e o posterior estudo de ADN.
Desse primeiro estudo, resultou o recenseamento de 32 exemplares, todos já nos campos alentejanos. As produções algarvias renderam-se às espécies estrangeiras, charolesa e, sobretudo, limosine, raças de mais rápido crescimento e melhor carne, o que levou ao desaparecimento da algarvia... de todo o Algarve.
Apurada, segundo se crê, ao longo de mais de cinco mil anos, a raça algarvia foi vítima, nos anos 80, do economicismo agrícola, mas também da politica da União Europeia, que logo na pré-adesão, em 1983, acabou com os subsídios às raças autóctones.
Uma decisão que viria a ser contrariada mais recentemente, mas sem grandes efeitos: os 200 euros por cabeça que a actual politica de biodiversidade doméstica atribui a cada produtor que queira ter uma vaca algarvia na sua exploração, por ser considerada “particularmente ameaçada”, ainda não convenceu os produtores algarvios.
Desaparecida dos campos do Algarve entre as décadas de 70 e 80, a algarvia “era essencialmente uma raça de trabalho, embora também produzisse carne”, afirma Isabel Palmilha, técnica da DRALG, que há mais de uma década constitui grupos de trabalho para a salvar da extinção.
O sémen da esperança
Menos abonada de músculo, com os cornos mais abertos e pontiagudos e revestida por uma singular pelagem castanho-avermelhada, a vaca algarvia é uma derivação da raça alentejana, embora seja da mesma família, sublinha a técnica.
Sobre o extermínio, um outro técnico da DRAALG – que pediu o anonimato - não tem dúvidas em chamar os bois pelos nomes: “Foi um autêntico genocídio de uma raça, feito com a cumplicidade dos serviços regionais de agricultura à altura, na década de 80, nomeadamente a Intendência Pecuária do Algarve (IPA)”.
E o pior foi o desaparecimento dos bois: o último puro terá sido morto em 1984 no matadouro da Malveira. Contudo, o primeiro grupo de trabalho da DRAALG acabaria por detectar quatro machos com fenótipos (características visuais) semelhantes aos dos livros, em duas herdades alentejanas e comprá-los, recolhendo-lhes o sémen.
Esse, é agora o “líquido da esperança” para a preservação da raça. O projecto para o seu uso já está elaborado mas há seis meses que aguarda “luz verde” da Direcção Geral de Veterinária.
Ironizando, dir-se-ia que é uma questão de descendências: mais de 20 anos depois do genocídio da raça, que contou com a cumplicidade da então IPA, a sua descendente DRAALG apressa-se agora a salvar da extinção os pouquíssimos sobreviventes de uma raça que chegou a dominar a região.
“Apressa-se” é força de expressão. Como sublinhou um médico veterinário da mesma DRAALG, dos 32 exemplares recenseados em 2001 – com base no aspecto visual, mas também no estudo do ADN proporcionado pelas recolhas de sangue – restam apenas 14, o mais novo dos quais já com 10 anos. Os restantes morreram, a maioria de morte natural.
Será que o sémen congelado ainda vai a tempo de salvar a raça?

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