terça-feira, 16 de setembro de 2008

QUEM TEM MEDO DA INTELIGENCIA?

Nas nações democráticas, organizações de Inteligência de Estado são um dos pilares para a afirmação e consolidação do status de país livre e emancipado, ao propiciar a coleta e análise de informações estratégicas destinadas a subsidiar o processo decisório de seus altos mandatários, assim como rastrear e deter as incursões de espionagem hostis aos interesses nacionais. Infelizmente, é menos por estas características formais e suas potencialidades e mais pela profusão de imagens e representações distorcidas que a população em geral concebe as atividades de Inteligência. Isso se dá particularmente pela massiva descarga de produções cinematográficas hollywoodianas nas salas de exibição de todo o mundo, nas quais, grosso modo, as Organizações de Inteligência são ora o aparato de sustentação para as ações heróicas de um agente bonito, ágil e brilhante que, sozinho, consegue desbaratar as conspirações mais maléficas de organizações internacionais, ora uma sombria e fria instituição que, intrusivamente, constrange a liberdade individual. Nos dois casos está permeado o mesmo fulcro ideológico - a do voluntarismo individualista que luta contra coletivos opressivos e assustadores -, sendo muito raras as vezes em que as Organizações democráticas de Inteligência de Estado são representadas conforme aquilo a que se propõem ser: instituições compostas não por super-homens, mas por funcionários de proporções extremamente humanas que buscam em sua ação concertada a defesa da população.

No caso do Brasil a antipatia à atividade de Inteligência conta com outro fator, este relevante e fundamentado: o passado funesto da mesma em nosso período ditatorial. O Serviço Nacional de Informações (SNI), como era chamado, atuou efetivamente no sentido de conter as liberdades civis e políticas dos cidadãos, recorrendo para tanto a expedientes execráveis em contextos civilizados, entre os quais o mais conhecido foi, a pretexto de extração de informações sobre conspirações contra o Brasil, a tortura. Ao fim deste período, um vácuo institucional se impôs, dada a inadequação da SNI e seus instrumentos para os tempos democráticos, de forma que a mesma foi extinta, cedendo lugar a uma estrutura de pouca operacionalidade institucional. Destaca-se nesta etapa o famoso "caso Raytheon", em que esta empresa norte-americana foi a vencedora de processo licitatório bilionário para a aquisição de equipamentos de alta tecnologia necessários à implantação do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM). Não se tratou de processo que primou pela correção, sendo que a Raytheon contou ostensivamente com o amparo do aparato de Inteligência de Estado de seu país para explorar todas as rugosidades do processo (tais como falta de transparência e corrupção de agentes do Estado brasileiro) para, ao final, ser a vencedora. A ausência de uma Organização de Inteligência consolidada e ativa no Brasil sem dúvida tornou esta incursão estrangeira possível, e os meandros dos fatos só puderam ser revelados na medida em que, pelas contingências legais norte-americanas, os autos que os relatavam foram desclassificados e tornados acessíveis ao público vários anos depois.

Foi assim que, ao final da década de 1990 o governo federal criou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), normativamente fundamentada para aparelhar o Estado democrático de soluções estratégicas no âmbito de coleta, análise e proteção de informações sensíveis. Todavia, a herança ainda importante da débil orientação técnica e forte enviesamento ideológico do SNI, assim como os baixos salários e péssimas condições de trabalho àqueles que nela ingressavam por meio de concursos públicos, tornaram a sua funcionalidade limitada. Apenas ao final do ano de 2007, quando foi nomeado como seu diretor-geral o delegado da Polícia Federal Paulo Lacerda (conhecido por, no período em que dirigiu o seu órgão de origem, intensificar as operações policiais e pelos expressivos resultados das mesmas no combate a práticas do Crime Organizado), a Abin passou por sucessivas mudanças destinadas a consolidar a sua vocação institucional a serviço da democracia. Em uma organização que preza a discrição e o silêncio, uma das mais ruidosas mudanças foi a criação do cargo de Oficial de Inteligência, com expressivo soldo, para o qual foram remanejados os funcionários que ingressaram na instituição por meio de concurso público (porém não aqueles indicados no período da SNI ainda em atividade). Mais foi apenas nos últimos dias que a Abin foi projetada às manchetes dos principais jornais brasileiros em decorrência de acusação de que teria procedido a interceptação telefônica do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. A prática de interceptação telefônica é legalmente vedada à Abin (ao contrário da maioria de suas homólogas em outros países), sendo no Brasil um recurso acessível à Polícia Federal contanto que seja obtida autorização do poder judiciário. Foi com este expediente que a Polícia Federal conseguiu coletar importantes provas contra o que talvez seja o mais expressivo nome do Crime Organizado brasileiro, Daniel Dantas, na chamada "Operação Satiagraha".

Para fins de síntese e pelo fato de os meandros inerentes a este caso terem sido abundantemente divulgados não nos debruçaremos sobre o caso. Cabe apenas lembrar que, tendo a Polícia Federal procedido ao encarceramento preventivo de Dantas e seus cúmplices, Mendes procedeu com celeridade inabitual à concessão de habeas corpus à maioria deles. A partir de então se inicia o inferno astral de Protógenes Queiroz, delegado que coordenava a "Operação Satiagraha" (forçado a abandonar o caso), e também o de Lacerda, na medida em que a mídia trouxe à tona suspeitas de contribuições da Abin na investigação do caso, chegando-se ao seu ápice agora, em que uma gravação contendo uma conversa telefônica do senador oposicionista Demóstenes Torres e Mendes foi entregue à revista Veja por um funcionário da Abin. Acrescentando-se esta prova da existência de interceptações telefônicas ilegais à acusação de que não se tratou de um fato pontual, e sim apenas um dos muitos registros realizados que tiveram por escopo outros integrantes dos poderes judiciário e legislativo e também do poder executivo, chegou-se a um quadro de exaltação de forte perigo para o ambiente investigativo brasileiro que pouco contribui para o adequado encaminhamento do assunto. Representantes da oposição ao governo no Congresso já proferem discursos alarmados, exigindo ora a demissão da cúpula da Abin, sob ameaça de início de processo de impeachment, ora protocolando uma redução ainda maior do instrumental de atuação do órgão, ao propor impeditivos para que o mesmo acesse dados classificados das forças armadas, da receita federal e quaisquer outros órgãos detentores e/ou produtores de informações estratégicas. Este último fato é definitivamente preocupante, pois tal prerrogativa é o produto do processo ainda em curso de consolidação do chamado Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), o qual busca integrar os diferentes órgãos do poder público que atuam com a coleta e análise de informações estratégicas, e do qual a Abin é legalmente o órgão central. Somadas esta amputação de sua capacidade de interlocução institucional às limitações investigativas que já lhe são inerentes, a Abin corre o risco de ser tornar uma Organização de Inteligência de Estado inócua, com escopo mas sem os meios de atingi-lo. Trabalha-se com o medo por meio da caricaturização da Abin como ente intrusivo e bisbilhoteiro. Quem tem a ganhar com isso? Quem tem medo da Inteligência?

Desde o início da Operação Satiagraha já se escuta ruídos contrários ao encaminhamento de processos investigativos. Na mídia foi surpreendentemente ampla divulgação do debate sobre a adequação ou não do emprego de algemas pela Polícia Federal na detenção de suspeitos se comparado à análise dos pormenores do enorme esquema de corrupção presidido por Daniel Dantas. Não se trata aqui de escamotear debates pontuais sobre procedimentos, os quais são pertinentes, mas de não permitir que a existência necessária dos mesmos desvie o foco do objetivo da investigação. No caso da Abin o debate sobre procedimentos assume uma pertinência ainda maior, visto que se tratou de subterfúgio ilegal e que, acrescido do fato de ter sido utilizado sem o conhecimento do diretor-geral do órgão, deve resultar em punições enérgicas contra os funcionários responsáveis (mas conduzidas em inquéritos inseridos nos mais estritos marcos legais administrativos). Mas o debate não se pauta nestes detalhes, apenas em uma sanha por castigar cegamente que faria Torquemada corar. A atenção ao histórico da Abin, aos difíceis entraves que a atual gestão vem se esforçando para derrubar são pouco considerados. Caso um alto mandatário de um dos poderes públicos de fato esteja sob suspeita de envolvimento com um dos maiores criminosos do país, a investigação se mostra mais peremptória que no caso do suspeito ser um cidadão comum, recorrendo-se para tanto a todo instrumento que potencialize a melhor averiguação de sua inocência ou culpa. O debate no entanto segue, sorrateiramente, lógica inversa: porque o suspeito é ocupante de alto posto de Estado, o mesmo não pode ser investigado. Naturalmente o enfoque nos procedimentos é relevante, devendo ser pautado na melhor condução da investigação para a preservação da intimidade. No caso da interceptação telefônica, trata-se de recurso que, utilizado com cautela, pode de fato propiciar ganhos investigativos excepcionais. Neste caso, por que não, ao invés de manter a proibição, não permitir o procedimento sob um marco legal ostensivo de encaminhamentos e controle? Tal marco poderia impor já na etapa da coleta a tarefa de filtrar quaisquer trechos que não indiquem envolvimento com o assunto investigado. Os circuitos de divulgação das informações já filtradas poderiam ser delimitados com precisão, facilitando o controle e supervisão do seu fluxo, e o vazamento das mesmas punidas como crimes de Estado. São estes apenas alguns exemplos propositivos que poderiam ser elencados, entre muitos outros, caso se instaurasse um debate sério e técnico sobre o assunto.

Os fatos demonstram que a Abin, enquanto Organização de Inteligência de Estado, ainda tem um longo caminho na continuidade de seu aperfeiçoamento técnico e administrativo como instituição de defesa do Estado democrático. Por outro lado, o medo ostentado e difundido por representantes do poder público e da sociedade civil organizada (neste último caso, especialmente a OAB) à investigação de fatos que indiquem condutas criminosas é especialmente preocupante, pois supõe uma classe de intocáveis. A legislação já prevê foro privilegiado em processos judiciais para políticos de alto nível. Seria razoável estender este expediente para os procedimentos investigativos?


Illimani de Moura é sociólogo e servidor público federal.

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