quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A QUESTÃO CRUCIAL DA SAÚDE

Na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente da Republica questionou diretamente as mudanças em curso no nosso sistema de saúde, e em especial algum desamparo em que ficam populações a que se encerraram Urgências. Os cidadãos têm contestado estas medidas na via publica, embora a gravidade dos fatos varie de local para local.
O Ministro da Saúde, questionado sobre o tema, admite que não tem conseguido passar a mensagem sobre as mudanças em curso, e sobre o seu alcance. Aliás, Correia de Campos é um técnico muito reputado, que geralmente conhece bem os dossiers. Todavia, as conclusões que tira desse conhecimento estão, por vezes, muito longe do real, o que torna problemáticas certas das suas atuações, algumas delas até com fortes laivos de ilegalidade. E quanto a qualidades de comunicação, estamos conversados.

Deixado este aviso, vamos tentar definir por que razão a Saúde é uma questão essencial das sociedades modernas. O ponto forte está no reconhecimento universal dos espantosos progressos da Medicina. Em menos de meio século, passamos de uma clinica de cuidadas historias do paciente e de minuciosas observações externas, para uma ciência altamente avançada e tecnologicamente dotadíssima, que estuda o homem desde as menores moléculas – bioquímica – até ás intrincadas imagens – imagiologia – na procura das causas da doença.
Chegado a um diagnostico, é possível trazer à cena um impressionante armamentário de novos medicamentos, altamente eficientes, e de recentes técnicas de intervenção, quase radicalmente curativas, ou pelo menos revertivas. Daí que o cidadão, nas sociedades avançadas, se sinta muito protegido e confortado, por saber que, caso venha a necessitar, a Medicina pode acudir-lhe, rapidamente e em força, retirando-o das garras da morte precoce ou da invalidez escusada.
Felizmente para os portugueses, a sua Medicina está entre as melhores do mundo, e tal não é de agora – ainda recordamos hoje, com saudade, a alta eficiência dos Clínicos Gerais da nossa terra. Como então se dizia “o que sabiam tratar, tratavam bem; se não sabiam tratar, sabiam sempre quem tratava bem”.
Os clínicos portugueses foram os grandes esteios da saúde das populações; basta ver os inúmeros bustos e nomes de ruas, em qualquer terra, por todo o Portugal fora. Esse mesmo elevado sentido profissional se refletia na Medicina Hospitalar, onde a competição era cerrada e duríssima, pela progressão ao longo dos degraus da carreira, que sucessivamente apenas selecionava os melhores, periodicamente submetidos a rigorosos concursos, que o nosso Scolari diria que eram “mata-mata”.
Motivados pela alta preparação técnica e cientifica, pelo elevado brio profissional, pela consciência da superior missão do trabalho medico, os nossos clínicos induziam relações medico-doente; muito personalizadas, plenas de sentimentos de estima e de confiança.
Depois da Revolução de Abril, os portugueses entenderam, e bem, que estes cuidados médicos de qualidade deviam ser expandidos e acessíveis a toda a população. É evidente que o paradigma que surgiu foi o Serviço Nacional de Saúde Inglês. Este tem muitas virtudes, mas uma não tem decerto – a de que sirva para exportação. Foi concebido para um povo civilizado e fleumático, que em geral detesta excessos e evita expressões emocionais despropositadas.
Na altura muita gente levantou a voz, avisando sobre os previsíveis inconvenientes da transposição cega desse sistema, quando a restante Europa mais evoluída preferia modelos mistos, com medicina hospitalar de rede publica (com alguns privados, poucos) e de medicina do ambulatório feita, no essencial, em clinicas privadas convencionadas, pagas pelas tabelas de atos médicos dos sistemas públicos.
Aliás, mesmo em Portugal o recurso do Serviço Nacional de Saúde a Clinicas convencionadas é muito antigo, desde há mais de 40 anos. Sabe-se que para patologia clinica, imagiologia e fisiatria, estes estabelecimentos privados satisfazem cerca de 90% das necessidades anuais dos portugueses, com geral satisfação dos chamados utentes.
Afinal se junta o melhor de dois mundos, pois as convenções poupam ao Estado enormes despesas em terrenos, projetos, construções, edifícios, equipamentos, manutenção, consumíveis, pessoal e encargos sociais (necessários para pôr um Centro de saúde a funcionar), enquanto garantem atendimento personalizado dos doentes, com alta qualidade. O Estado paga as convenções a baixo custo, e garante a cobertura do país com cuidados médicos adequados, com referencia à rede hospitalar publica, em caso de necessidade para o doente, quer para atos médicos complexos, quer para urgências.
A libertação de verbas assim resultantes ajuda a garantir uma medicina hospitalar mais eficiente, e dotada de técnicas de ponta, e disponibiliza aos pacientes os últimos progressos da terapêutica, em especial a famacológica, cujos encargos sobem muitos pontos anualmente, pois a sua investigação e produção têm uma extrema dependência dos preços do petróleo.
Assim, desde 1975 em diante, se foi montando um Serviço Nacional de Saúde de tipo inglês, para uma população pouco informada dos problemas de Saúde, e com alguma tendência para um; deixar-andar mediterrânico, em geral; pouco atenta e cumpridora de medidas preventivas e de prazos de vigilância, que os britânicos costumam garantir através de telefonemas e de postais de aviso, a partir dos Centros de Saúde.
Os resultados deste sistema são variados. Quando as densidades demográficas não são grandes, como na Região Centro, funciona muito bem, quero dizer “à inglesa”. Quando as densidades são altas, tudo pode acontecer, e por aí não avanço mais, pois a experiência da nossa área tem pontos altos e baixos, que não vêm agora ao caso.
Depois de alguns contatos imediatos do primeiro grau com situações de caos, que facilmente se gerem no sistema, muitos cidadãos previdentes optaram por aderir a Seguros de saúde. Segundo me dizem, parece que os segurados já rondam perto de um milhão.

Afinal de contas, qual é, no essencial, o maior problema do nosso sistema de saúde? Na prática, é a limitação dos recursos de que dispomos, junto a uma filosofia de base incorreta...
São os médicos que não temos, os especialistas que não existem em quantidade adequada, os desperdícios de verbas, que obrigam a fechar Maternidades que nunca o foram verdadeiramente, ou Serviços de Urgência com muito menos capacidade de solução de problemas reais do que uma ambulância do INEM. Mas ainda que toda essa gente existisse, é duvidoso que se conseguissem verba para os contratar algum dia, para a cobertura integral das necessidades.
Outra face do mesmo problema é que esses recursos não existem agora, nem nunca irão existir. Porque os custos globais dos cuidados médicos de um país sobem muito, em cada ano que passa, e o Orçamento Geral do Estado sobe muito menos, percentualmente, senão o país vai à ruína com os impostos.
Outra face ainda, é que as ineficiências do sistema geram muito mais despesa adicional. São os custos da sobrecarga da procura, que estrangulam o atendimento em tempo útil, e deixam evoluir patologias que, tratadas no inicio, teriam encargos muito menores.
Junte-se a enorme desmotivação que tem atingido os profissionais de saúde, em especial os médicos. A dificuldade de atendimento de pacientes no ambulatório, em tempo útil, tem levado a desesperantes e absurdas sobrecargas dos Serviços de Urgência, com precoce esgotamento da capacidade de resistência dos clínicos, submetidos a pesadíssimos horários de Banco. Não admira, portanto, que a fuga de médicos para os novos Hospitais privados tenha sido enorme, em especial entre os nomes mais conceituados.
Adicionem-se as fortes limitações orçamentais nos próprios hospitais, que conduzem a restrições no numero e qualidade dos atos médicos, eventualmente ao arrepio das necessidades dos doentes. Essas restrições não se aplicam, todavia, a contratação de novos administradores hospitalares, que se destinam apenas a impor esses limites, de modo casuístico, sem que se lhes conheçam as justificações.
Pouco importante é a paragem das carreiras Medicas Hospitalares, cuja aplicação deixou de se fazer já desde há alguns anos. Desaparecem assim as motivações para uma preparação cientifica exaustiva dos clínicos, pois não se prevê que haja mais Concursos, nem progressões por mérito, mas apenas por servidão administrativa. Quando se diz servidão não é exagero nem força de expressão.

Com tudo isto, o nosso Serviço Nacional de saúde está a transformar-se num enorme transatlântico, apinhado de gente, a circular por inércia em cerrado nevoeiro, rumo a um futuro que será decerto insustentável na forma atual.
Será talvez preciso algum naufrágio, para que se entenda a real dimensão deste problema, e se introduzam os grandes remédios para esta doença da Saúde, que passa decerto por auditorias independentes, para se avaliar o que é ou não viável, e corrigir as deficiências. E, claro, precisa-se de outra filosofia de fundo.

Mas nada disso é realista neste momento, perante esta atuação de um Ministro que, em normal país com eficiente governo, provavelmente já não estaria no posto.
De fato, se há coisa que Correia de Campos não poderá explicar aos portugueses, é que o sistema de saúde que eles escolheram, qualquer dia deixa de ser viável.
E não temos Plano B...

Dr. Miguel de Sousa – in Jornal do Barreiro 04 de Janeiro de 2008

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