quarta-feira, 21 de outubro de 2009

SÓCRATES E A LIBERDADE

EM CONSEQUÊNCIA DA REVOLUÇÃO DE 1974 , criou raízes entre nós a ideia
de que qualquer forma de autoridade era fascista. Nem mais, nem menos.
Um professor na escola exigia silêncio e cumprimento dos deveres?
Fascista! Um engenheiro dava instruções precisas aos trabalhadores no
estaleiro? Fascista! Um médico determinava procedimentos específicos
no bloco operatório? Fascista! Até os pais que exerciam as suas
funções educativas em casa eram tratados de fascistas.
Pode parecer caricatura, mas essas tontices tiveram uma vida longa e
inspiraram decisões, legislação e comportamentos públicos. Durante
anos, sob a designação de diálogo democrático, a hesitação e o
adiamento foram sendo cultivados, enquanto a autoridade ia sendo posta
em causa. Na escola, muito especialmente, a autoridade do professor
foi quase totalmente destruída.

EM TRAÇO GROSSO, esta moda tinha como princípio a liberdade. Os
denunciadores dos 'fascistas' faziam-no por causa da liberdade. Os
demolidores da autoridade agiam em nome da liberdade. Sabemos que isso
era aparência: muitos condenavam a autoridade dos outros, nunca a sua
própria; ou defendiam a sua liberdade, jamais a dos outros. Mas enfim,
a liberdade foi o santo e a senha da nova sociedade e das novas
culturas. Como é costume com os excessos, toda a gente deixou de
prestar atenção aos que, uma vez por outra, apareciam a defender a
liberdade ou a denunciar formas abusivas de autoridade. A tal ponto
que os candidatos a déspota começaram a sentir que era fácil atentar,
aqui e ali, contra a liberdade: a capacidade de reacção da população
estava no mais baixo.

POR ISSO SINTO INCÓMODO em vir discutir, em 2008, a questão da
liberdade. Mas a verdade é que os últimos tempos têm revelado factos e
tendências já mais do que simplesmente preocupantes. As causas desta
evolução estão, umas, na vida internacional, outras na Europa, mas a
maior parte residem no nosso país. Foram tomadas medidas e decisões
que limitam injustificadamente a liberdade dos indivíduos. A expressão
de opiniões e de crenças está hoje mais limitada do que há dez anos. A
vigilância do Estado sobre os cidadãos é colossal e reforça-se. A
acumulação, nas mãos do Estado, de informações sobre as pessoas e a
vida privada cresce e organiza-se. O registo e o exame dos
telefonemas, da correspondência e da navegação na Internet são legais
e ilimitados. Por causa do fisco, do controlo pessoal e das despesas
com a saúde, condiciona-se a vida de toda a população e tornam-se
obrigatórios padrões de comportamento individual.

O CATÁLOGO É ENORME. De fora, chegam ameaças sem conta e que reduzem efectivamente as liberdades e os direitos dos indivíduos. A Al Qaeda, por exemplo, acaba de condicionar a vida de parte do continente
africano, de uma organização europeia, de milhares de desportistas e
de centenas de milhares de adeptos. Por causa das regulações do
tráfego aéreo, as viagens de avião transformaram-se em rituais de
humilhação e desconforto atentatórios da dignidade humana. Da União
Europeia chegam, todos os dias, centenas de páginas de novas
regulações e directivas que, sob a capa das melhores intenções do
mundo, interferem com a vida privada e limitam as liberdades. Também
da Europa nos veio esta extraordinária conspiração dos governos com o
fim de evitar os referendos nacionais ao novo tratado da União.

MAS NEM É PRECISO IR LÁ FORA. A vida portuguesa oferece exemplos todos
os dias. A nova lei de controlo do tráfego telefónico permite escutar
e guardar os dados técnicos (origem e destino) de todos os telefonemas
durante pelo menos um ano. Os novos modelos de bilhete de identidade e
de carta de condução, com acumulação de dados pessoais e registos
históricos, são meios intrusivos. A vídeovigilância, sem limites de
situações, de espaços e de tempo, é um claro abuso. A repressão e as
represálias exercidas sobre funcionários são já publicamente
conhecidas e geralmente temidas A politização dos serviços de
informação e a sua dependência directa da Presidência do Conselho de
Ministros revela as intenções e os apetites do Primeiro-ministro. A
interdição de partidos com menos de 5.000 militantes inscritos e a
necessidade de os partidos enviarem ao Estado a lista nominal dos seus
membros é um acto de prepotência. A pesada mão do governo agiu na
Caixa Geral de Depósitos e no Banco Comercial Português com intuitos
evidentes de submeter essas empresas e de, através delas, condicionar
os capitalistas, obrigando-os a gestos amistosos. A retirada dos nomes
dos santos de centenas de escolas (e quem sabe se também, depois, de
instituições, cidades e localidades) é um acto ridículo de
fundamentalismo intolerante. As interferências do governo nos serviços
de rádio e televisão, públicos ou privados, assim como na 'comunicação
social' em geral, sucedem-se. A legislação sobre a segurança alimentar
e a actuação da ASAE ultrapassaram todos os limites imagináveis da
decência e do respeito pelas pessoas. A lei contra o tabaco está
destituída de qualquer equilíbrio e reduz a liberdade.

NÃO SEI SE SÓCRATES É FASCISTA. Não me parece, mas, sinceramente, não
sei. De qualquer modo, o importante não está aí. O que ele não suporta
é a independência dos outros, das pessoas, das organizações, das
empresas ou das instituições. Não tolera ser contrariado, nem admite
que se pense de modo diferente daquele que organizou com as suas
poderosas agências de intoxicação a que chama de comunicação. No seu
ideal de vida, todos seriam submetidos ao Regime Disciplinar da Função
Pública, revisto e reforçado pelo seu governo. O Primeiro-ministro
José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra
autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal
que Portugal conheceu nas últimas três décadas

TEMOS DE RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável
para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos
cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação?
Acordo? Só se for medo...


António Barreto \ Público'

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